“Não se trata de uma manifestação popular”. De acordo com o curador Galdêncio Fidélis , da exposição “Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, não é possível atribuir à inquietação das pessoas nos últimos dias o caráter puramente público, já que o início da polêmica em torno da mostra que estava aberta a todas as faixas etárias no Santander Cultural de Porto Alegre (RS), e foi cancelada nesta última semana, começou por conta de um vídeo feito por integrantes do Movimento Brasil Livre, organização política, sem fins lucrativos, de extrema direita.
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Segundo Galdêncio Fidélis, a mostra “Queermuseu” não está especificamente relacionada às questões LGBT, apesar também de abordá-las. De acordo com o curador, essa temática é apenas uma parte da exposição. “Isso é uma parte da exposição, é uma porta de entrada para uma discussão muito maior e está relacionada a um campo de problemas artísticos. Mas, que evidentemente, se entrecruzam com questões de gênero, com a cultura e comunidade LGBT e todo um universo de questões que envolve diversidade e diferença”, explica.
Porém, na opinião do militar Marcus Vinícius Almeida, a “Queermuseu” deveria ser exposta apenas para adultos e com aviso prédio do seu conteúdo. “Essa exposição, não pode ultrajar símbolos religiosos desrespeitando eles, pois isso é crime, bem como crianças, mesmo acompanhada dos pais, não podem comparecer a esses eventos por proteção do estatuto da criança e adolescente, que estabelece que crianças não podem ser expostas à pornografia ou a pedofilia, crianças fazendo sexo com adultos é pedofilia”, acredita ele.
Corroborando com o raciocínio do militar, Luiza Santos, estudante de ciências contábeis, assim como Marcus, defendeu o cancelamento da exposição, mas por acreditar que os protestos e expressões culturais são feitos atualmente de forma agressiva e ofensiva. “Por que não foi realizada uma exposição ou protesto cultural para a iniciativa de ações mais efetivas e, de certa forma, que ajude os brasileiros?”, questiona ela. “O Santander é um banco europeu, que tem na essência sua diversidade, no entanto, o brasileiro, apesar de toda sua miscigenação, é um país conservador, até maleável e tem aquele espírito bem humorado”.
A onda de críticas
De acordo com o relato dado por Galdêncio ao iG Gente , as críticas à exposição só começaram depois da última quarta-feira (6), após o vídeo feito pelos integrantes do MBL, que acusava a “Queermuseu” de fazer apologia a zoofilia, pedofilia e blasfêmia a símbolos religiosos, ter sido divulgado.
No entanto, uma visita feita à exposição pelos promotores Denise Villela e Julio Almeida, do Ministério Público, garantiu que “não há crianças e adolescentes em sexo explícito ou exposição de genitália de crianças e adolescentes” ou “obras que façam que a criança seja incentivada a fazer sexo com outra criança” na exposição, apenas “algumas imagens que podem caracterizar cenas de sexo explícito”.
O curador também comentou o posicionamento do Ministério Público em relação às denúncias feitas pelo MBL. “O Ministério Público lançou uma nota, após visitar a exposição, que foi publicada em vários jornais do País, dizendo que visitou a mostra e que não há nada de zoofilia, pedofilia e pornografia na exposição e sequer recomendou faixas etárias”, diz. “E agora o MBL está atacando o Ministério Público dizendo que ele se vendeu. Então, nós estamos numa situação muito complexa porque não estamos falando de um clamor popular”, completa.
Além de pontuar que antes da viralização dos conteúdos nas redes a “Queermuseu” ia bem, Galdêncio também garantiu ter presenciado todas as ações realizadas pelas pessoas do coletivo político dentro do Santander Cultural Porto Alegre. “Eles fizeram isso quarta-feira à tarde, às 16h. Eu estava no espaço, inclusive, e presenciei, in loco, todas essas ações deles. Eles editaram esses vídeos, criaram uma narrativa oral e visual falsa da exposição e jogaram isso para as redes”, conta.
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Por ter presenciado o momento em que integrantes do MBL fizeram a gravações de algumas obras da “Queermuseu”, o curador também falou sobre como foram conduzidas cada uma delas. “Na quarta-feira à tarde, um grupo radical do MBL começou uma série de investidas – aliás, radical e MBL é quase que uma redundância - extremamente agressivas em direção a exposição: com câmeras em punho, entrando na mostra sistematicamente, abordando adolescentes, crianças, o público, o pessoal do processo educativo, os funcionários da exposição sem nenhuma restrição e fazendo perguntas que eu não posso, pela minha natureza, pelo que eu sou, sequer repeti-las”, diz o curador.
Seguindo o relato de Galdêncio, é impossível ter um posicionamento justo diante de toda a polêmica envolvendo a “Queermuseu” sendo que o protesto iniciado pelo MBL começou baseado em apenas três, ou quatro obras dentro de 270 que compõem exposição. “Noventa e nove por cento das pessoas que tiveram acesso a essa narrativa que eles criaram, absolutamente distorcida, não puderam ver a exposição. Julgaram a exposição com base em três ou quatro obras que eles usaram como plataforma, que agora eles, inclusive, não usam mais. Então, não é uma manifestação popular, acho que é preciso a gente ter clareza nesse momento”, opina.
Protestos
Na tarde da última terça-feira (12), um grupo grande de pessoas se reuniu em frente ao Santander Cultural de Porto Alegre para protestar contra a decisão do centro cultural de suspender a exposição após as acusações feitas pelo MBL. O ato foi organizado pela ONG Nuances, a primeira do Rio Grande do Sul a lutar pela livre expressão sexual, segundo o coordenador Célio Golin, que falou ao iG Gente .
Para o ativista, mesmo com toda a movimentação a favor do cancelamento da exposição, a decisão do Santander foi uma surpresa. “Quando nós tivemos a notícia que estavam intimidando a gente, já ficamos preocupados. Mas o que mais me chocou foi o Santander ter aceito essa chantagem dos grupos de extrema direita”, revela. “É grave. O Santander fechou com uma nota com argumentos rasteiros, inconsistentes e, na realidade, a exposição foi fechada por ter temática LGBT. Aí foi usado o pretexto das crianças”, complementa. “O fechamento significa que esses grupos de extrema direita vão ser empoderados e o Santander não pensou nisso nisso. Ele vai ter que responder por essa atitude covarde, é uma atitude que tem a ver com nós”, termina Célio Golin.
Para Gabriel Galli, coordenador geral da ONG Somos Nós, a exposição foi vítima de censura. Ao ser questionado sobre a legitimidade do cancelamento, o ativista levantou a importância da permanência de obras de arte relevantes com visitação liberada. “Essa exposição reuniu uma série de obras de artistas bem importantes aqui do Rio Grande do Sul e tinha uma proposta de falar de direitos humanos. A instituição pedir desculpas pela exposição, de uma certa forma, é uma censura. É errado por isso”, opina Gabriel.
Censura?
Ainda que no caso da exposição “Queermuseu” a intenção não tenha sido realizar um protesto, mas propor ideias que levam à uma reflexão, a decisão do Santander Cultural de Porto Alegre de suspender a exposição foi, por muitos artistas, considerada como censura, uma opressão que fez parte da realidade dos produtores culturais brasileiros durante a ditadura - que se instalou como regime político em meados do século XX.
Trazendo à tona episódios conhecidos pela maioria dos brasileiros, artistas renomados da Música Popular Brasileira como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque, sofreram represálias do governo entre as décadas de 60 e 80 por conta de músicas como Apesar de Você, Cálice, É Proibido Proibir e Bolsa de Amores, que iam diretamente contra os ideais do governo despótico da época por abordarem, minimamente, uma temática libertária.
Porém, não foi só na ditadura que artistas brasileiros tiveram suas obras tiradas do ar por conta de censura. Legítima ou não, essa represália já atingiu artistas em outras instâncias, como no teatro, na televisão e até mesmo em simples campanhas. No caso do autor da peça “Edifício London”, nome do prédio do qual Isabella Nardoni foi atirada pela janela do apartamento pelo próprio pai, a censura agiu e tirou a obra de cartaz.
Além do caso do espetáculo “Edifício London”, o desenho animado “Tom & Jerry”, após o lançamento de sua coletânea em Blu-ray pela Warner, teve exigências vindas de ativistas sociais para que dois episódios da série fossem retirados, já que em um deles haveria “excesso de ódio” entre Tom e Jerry e, no outro, haveria cenas de racismo, uma vez que Tom e Jerry pintam o rosto de negro (“blackface”).
Fora do Brasil, um episódio na França também ocorreu, quando o metrô de Paris censurou uma campanha da Renova. A campanha, que estava sendo apresentada ao público por meio de telas de grande formatos, viu a RATP, entidade que gere o metrô de Paris, proibir sua exibição por considerar que a mesma tem um cariz sexual e exibe uma tatuagem de cariz religioso.
No caso da exposição “Queermuseu”, a intolerância e o ódio das pessoas que aderiram a campanha do MBL contra o que estava exposto - e que tira, em alguma medida, as pessoas de pensar no senso comum - culminou na decisão do Santander Cultural de cancelar a mostra. Por conta disso, o público que acompanha o caso se dividiu: em relação aos que repudiaram a “Queermuseu”, mesmo com ela fora do circuito cultural ativo, as críticas ao banco permanecem. Em relação ao público que apoia a permanência da exposição aberta, o ato foi considerado como censura, que julga a conveniência da liberação de quaisquer obras artísticas ou informativas à exibição pública.
Repercussão
As mais de 17 mil reações ao posicionamento do Santander Cultural no Facebook, que falou sobre o cancelamento da exposição “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, foram em sua maioria negativas, assim como os comentários da publicação, que quase bateram a marca de 20 mil até agora.
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De acordo com o informe divulgado pela página do Facebook da sede de Porto Alegre (RS) do Santander Cultural, a exposição “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira” receberia visitantes até o dia 8 de outubro e tinha o propósito de “promover o questionamento entre a realidade das obras e o mundo atual” e “fazer refletir sobre os desafios que devemos enfrentar em relação à questões de gênero”, além de, talvez, com as obras, poder “provocar um sentimento contrário daquilo que discutem”.
No entanto, depois de fotos de algumas obras da mostra viralizarem nas redes sociais por meio de registros feitos em vídeos por integrantes do Movimento Brasil Livre, o público questionou o propósito da mostra na web e também criticou a permissão dada pelo Banco Santander para que a exposição acontecesse. As críticas e o boom de reações de rejeição, então, fizeram com que o Santander Cultural cancelasse a “Queermuseu”. Ainda assim, a polêmica em torno da mostra rendeu a instituição financeira uma porção de contas-correntes canceladas.