Um dos maiores empresários do Brasil, Marcelo Odebrecht passou a ser uma figura de indesviável interesse público na esteira da sua prisão em junho de 2015. Essa prisão, narrada com requintes cinematográficos por Regiane Oliveira e Marcelo Cabral em “O Príncipe”, biografia não autorizada do herdeiro e até recentemente CEO da maior construtora do País, acenou aos brasileiros que a Lava Jato estava mesmo mudando alguns paradigmas no Brasil.
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“Fomos procurados pela editora”, explica Regiane Oliveira ao iG , “que buscava jornalistas que já tinham atuado na área econômica para tocar o projeto”. A editora Astral Cultural queria, claro, se alimentar da explosão de interesse pelo personagem Marcelo Odebrecht , mas também por sua personalidade, peculiaridades e papel na Lava Jato. A velocidade dos fatos, no entanto, preconizava cautela a todos os envolvidos. “Foi minha reportagem mais longa e mais rápida”, admite Regiane. Lançado no início de julho, o livro ficou pronto em oito meses. “É um personagem do nosso tempo. Do agora”, atesta.
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A jornalista se queixa de que há poucas biografias sobre empresários brasileiros, mas espera que as relações escusas expostas pela Lava Jato mudem esse panorama. “Esses caras são muito importantes. Eles podem decidir não contar a história deles e aí o Brasil já perde. Se eles contam a história deles sozinhos, o Brasil perde também”, teoriza. “Onde você encontra a história da Varig?”, provoca.
Regiane conta que quis saber da Astral Cultural qual livro eles tinham em mente. “'Vocês querem um livro para defender ou acusar o Odebrecht? Nenhum dos dois! Ótimo porque somos jornalistas e não sabemos fazer isso'”, recorda. “O Príncipe”, que peremptoriamente é assim batizado em referência a Maquiavel, busca a todo o tempo o contraditório e a ambiguidade. Seja na organização dos capítulos, ora com o Marcelo cidadão de bem, ora com o Marcelo corrupto, ora com atenção à empresa, ora com atenção à Lava Jato, “O Príncipe” se alimenta desse pluralismo que um dos personagens mais fascinantes da vida pública brasileira contemporânea tem a oferecer.
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A Lava Jato é indissociável de Marcelo Odebrecht no momento e a própria existência de uma biografia não autorizada resulta dessa avaliação. Doravante, mais do que compreensível, é imperioso que a operação paute “O Príncipe”. Contudo, finalizadas as quase 400 páginas do livro, é igualmente indesviável a sensação de que há menos Marcelo Odebrecht do que o desejável na obra. Na entrevista Regiane falou algo que pode ser interposto como uma defesa válida para os autores: “Quero fazer um livro em que o personagem Marcelo ajude a refletir o País”. A quem se predispuser a reflexão, ela está lá. Há muitas reflexões possíveis e este é inegavelmente um trunfo do livro.
Regiane vai além. “Quando você nasce pobre, você não tem todas as escolhas e o Marcelo tinha todas as escolhas. Foi uma escolha dele de trabalhar nessa zona de corrupção”, observa. “Ele transitou muitos anos por esse território cinza”. Esse Marcelo de grande complexidade é uma presença constante no livro. “Ele não falou com a gente, mas ele e a família estão cientes do livro”, observa a jornalista. Mas quem falou? “As mesmas pessoas que falaram com a gente são as pessoas que estão falando com a imprensa toda”, responde. Com a devida vênia de que alguns critérios e sistemáticas de checagem precisaram ser adotados por ela e seu parceiro. “Muita coisa ficou de fora”, explicam na apresentação do trabalho, onde também assumem toda a responsabilidade pelo que está publicado e prometem atualizações futuras.
A narrativa é envolvente e denota o entrosamento da dupla – Regiane trabalha no El País e Marcelo Cabral recentemente deixou a Época Negócios, ambos já tiveram passagens pelo iG , e se avigora como um documento histórico.
Ainda que o livro chegue em um momento que Marcelo Odebrecht prescinda do protagonismo de empresário corrupto nas manchetes – e uma biografia dos irmãos Batista está no forno – “O Príncipe” é uma leitura cerimoniosa para quem deseja entender mais das entranhas do jogo político-econômico brasileiro.
A cultura da Odebrecht e a relação difícil com o pai ganham relevo no olhar dos jornalistas e ajudam a pavimentar a complexidade de Marcelo, um homem que suscita as mais diversas percepções e essas vão sendo aventadas em doses homeopáticas pelos autores, de maneira a alimentar o interesse do leitor mesmo quando Marcelo parece um coadjuvante em sua própria biografia.
“O Príncipe” não almeja ser a biografia definitiva de Marcelo Odebrecht, personagem que em um espaço de um ano mudou reiterada e traumaticamente sua biografia, mas se assevera como uma prestação de serviço ao Brasil. No âmbito cultural, social e mais do que nunca, político.