Figura indiscutível da cultura do Brasil, Machado de Assis atravessou a história e firmou-se como o maior cânone da literatura do País. Alguns dizem que o autor estava “à frente de seu tempo”, entretanto, é possível ir ainda mais longe e afirmar que sua genialidade é atemporal. Seus trabalhos são perenes – não importa se hoje ou há um século, o autor destacou-se ao falar daquilo que nos é intrínseco, ao mesmo tempo em que captou estímulos do ambiente que o circundava. Com maestria, Machado soube valer-se da essência e da complexidade humana para estruturar suas narrativas.

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Machado de Assis, maior autor brasileiro da história, transcende seu tempo histórico e consolida cultura nacional
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Machado de Assis, maior autor brasileiro da história, transcende seu tempo histórico e consolida cultura nacional


O que é Machado?

A obra completa de Machado de Assis é vasta, percorrendo diversos caminhos e estilos, porém destacam-se seus contos e romances pertencentes à segunda fase de seus anos de atividade. Foi nesse período em que surgiram seus trabalhos que reescreveram a história cultural brasileira, como, por exemplo, “ Memórias Póstumas de Brás Cubas ”. Já é de praxe fazer tais afirmações sem refletir de fato sobre a magnitude da influência machadiana.

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O trabalho do autor é matéria-prima para os mais vastos tipos de reflexões, mas há aspectos que destacam-se por configurarem a espinha dorsal do que é Machado. Inicialmente a linguagem utilizada em suas obras chama atenção pois sua penetração no interlocutor independe ao tempo material. “É uma linguagem moderna, com isso quero dizer uma linguagem que qualquer tempo cronológico admira e se encaixa nela”, comenta a escritora Nélida Piñon, membro da Academia Brasileira de Letras, sem se preocupar em mostrar tamanha admiração que sente pelo autor.

Outro fator que faz com que Machado transcenda seu contexto é, como apontou a acadêmica, a ambiguidade. Sutil, suas narrativas se insinuam para o leitor na exata medida. Machado de Assis não diz, mas também não nega - a beleza de seus trabalhos está no perfeito equilíbrio do diálogo entre a exposição e o silêncio das entrelinhas. Afinal, Capitu traiu Bentinho?

Em um momento em que o país era majoritariamente rural, Nélida Piñon acrescenta que Machado foi visionário, também, por focar-se em desenvolver um retrato com cenário urbano em suas obras. “Numa época em que escritores se dedicavam ao costumbrismo, o Machado sempre foi de uma modernidade extraordinária. Ele elegeu o urbano como tema e fez desse urbano a representação do Brasil”, diz a acadêmica.

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Não obstante a isso, sem misticismo, mas com uma incrível lucidez voltada para a realidade, Machado disseca a alma humana em seus escritos. Essa característica faz com que lê-lo seja intrigante - ao mesmo tempo em que se mergulha na psique dos personagens, é possível ter um vislumbre de grandes temas que envolvem a humanidade em seu sentido mais fundamental. Lisangêla Peruzzo, professora do colégio Porto Seguro que trabalha o autor em suas aulas, descreve que isso o torna atemporal. “A cada leitura se somam coisas novas”, explica.

Figura história

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Machado de Assis impõe pela sua trajetória como intelectual respeitado e influente

A importância de Machado de Assis enquanto escritor é singular, contudo, isso não o isenta de apresentar demais facetas que sejam igualmente relevantes e que mereçam ser lembradas - no caso, sua relevância como personagem da história do País é notável. Em tempos em que a escravidão ainda rondava as soleiras das portas, Machado era negro, filho de escravos alforriados, de origem pobre, epilético, tartamudo, que começou a trabalhar desde jovem e sequer terminou seus estudos. Paulatinamente aquele jovem autodidata tornou-se um dos maiores intelectuais que o País já conheceu.

Lisângela Peruzzo reitera que no âmbito acadêmico, é de fundamental importância salientar não apenas a obra de Machado, mas também quem ele foi em vida. “Isso dá para o aluno uma sensação que literatura pode ser feita por qualquer um, não só pela elite”, comenta a professora.

A história real por trás do grande autor é, para Nélida Piñon, um dos fatores que asseguram a posição magistral de Machado e que seu reconhecimento é um espelho de quem somos de fato enquanto nação. “Nós estamos entendendo mais quem nós somos, estamos entendendo mais nossa procedência [...] nós destacamos o que nos agrada e Machado de Assis é um motivo de orgulho”, diz.

Entre mestres

Hoje, decerto, Machado ocupa um espaço bastante caro com relação à construção cultural do Brasil - e indubitavelmente isso é fruto de uma construção histórica acerca de sua imagem e de seus trabalhos, contudo, engana-se quem acredita que esse processo tenha se iniciado após sua morte. “O sentido da grandeza que se imprime ao Machado, de verdade foi pressentido, ou mais do que pressentido, foi observado pelos seus pares [...] Ele era tido como uma cabeça excepcional com uma obra extraordinária”, frisa Nélida Piñon.

Defensora ávida do trabalho do autor, Nélida explica que Machado de Assis sempre foi uma presença marcante no campo literário, mesmo entre os intelectuais de sua época, que já o aclamavam e reconheciam o que tinham diante de si. Essa estruturação foi base para que os anos consolidassem a magnitude do autor perante o cenário cultural. “Cada um de nós ajudando a recrudescer esse reconhecimento da grandeza”, explica a escritora. Para ela os últimos vinte anos foram um período em que a expressividade de Machado ganhou mais notoriedade.

Exportação cultural

Machado é soberano em território nacional, seu nome é sinônimo de autoridade no campo da literatura, entretanto sua extensão é limitada pelas fronteiras do País. Saindo do espaço brasileiro, o autor ainda não tem uma fração do reconhecimento merecido. Em 2008, quando completava-se um século de sua morte, o jornal New York Times dedicou uma matéria a ele - e uma das conclusões do veículo era de que a falta de traduções adequadas de seus trabalhos configurava uma barreira para a universalização de seu reconhecimento.

''Capitu'', série da Globo dirigida por Luiz Fernando Carvalho é adaptação da obra de Machado de Assis ''Dom Casmurro''
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''Capitu'', série da Globo dirigida por Luiz Fernando Carvalho é adaptação da obra de Machado de Assis ''Dom Casmurro''

Nélida Piñon acredita que o sonho de ver Machado ocupando uma posição entre os grandes de sua época poderá jamais se concretizar não apenas pelo entrave que a língua representa, mas também por questões culturais em que o poder se sobressai em relação à qualidade.

“O Brasil em termos culturais é periférico. Nós não temos o reconhecimento merecido. Não nos falta literatura nem nos faltam grandes escritores, mas nós não estamos no epicentro cultural, no poder cultural. Portanto, é o poder que determina quem é grande”, afirma a escritora.

Por que Machado?

Enquanto outros autores entram e saem do currículo acadêmico de formação, Machado de Assis permanece. Não somente ele é relevante para entender um movimento literário específico, mas é, também, um pilar da formação intelectual da língua portuguesa. Seja por seu impacto enquanto personagem - que, como ressaltou a professora Lisângela, impressiona os alunos por sua história e os leva a desmistificar a posição que a literatura ocupa. 

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Machado de Assis convida à reflexão da sociedade através de suas narrativas engenhosas

Ela também frisou que através do olhar do autor os alunos conseguem entender as permanências e as mudanças da sociedade brasileira. Se naquele momento certos problemas sociais já eram latentes, até hoje muita coisa manteve-se intocada e as mazelas continuam a se reproduzir. “Ele trata, por exemplo, de diferença de classes e racismo”, comenta a professora. Segundo ela, Machado convida os leitores a terem um olhar mais analítico sobre a realidade e esse é um dos motivos pelos quais sua presença na formação é imprescindível.

Não é extravagante afirmar que se não fosse Machado a literatura brasileira não seria a mesma que conhecemos. Sinônimo de excelência em matéria de escrita, Machado de Assis é o maior expoente da literatura nacional e resiste ao tempo, provando sua grandeza. Para a acadêmica Nélida Piñon, é impensável dissociar o autor do que conhecemos como cultura . “Se autores como ele desaparecerem é porque a sociedade deixou de ser sociedade [...]  mas prefiro não viver nesse mundo”, finaliza a escritora.

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