Depois de oito episódios de tirar o fôlego com uma verdadeira ópera visual e histórias relevantes como nunca em sua trama – talvez muito do que Neil Gaiman escreveu nos idos dos anos 2000 sejam ainda mais vivos hoje do que na época – “American Gods” tem muito mais a dizer do que apenas a redescoberta da vida em liberdade de Shadow (Ricky Whittle) e seu encontro casual com Mr. Wednesday (Ian McShane), um senhor que aparentemente sabe tudo sobre a sua vida. A narrativa da história abre margem para uma série de outras discussões mais complexas do que a “jornada do herói” de sempre.
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Onde estão os deuses?
Nós matamos os antigos deuses quando deixamos de cultuá-los? “ American Gods ” mosta que não, mas quando a racionalização tomou conta da sociedade há anos, as pessoas deixaram de acreditar na magia como fonte centralizadora dos fenômenos. Assim, os deuses foram destituídos do posto de divindades e tornaram-se histórias. Os deuses que hoje vivem foram reduzidos à sombra de sua glória e entraram em decadência, suplicando por migalhas de idolatria para, ao menos, sobreviver. O panteão que reinou durante centenas de anos foi engolido pelos novos e poderosos deuses – Technical Boy, Media e Mr. World representam a tecnologia, a mídia e a globalização. Os novos deuses ameaçam todas as outras divindades que se encontram em um beco sem saída: seduzidas pelo poder, ficam dividas entre alianças com os novos deuses e a guerra contra eles para, mais uma vez, ter humanidade aos seus pés.
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Subvertendo ciência em religião
A ascensão de novos poderes no jogo da dominação seria o que o teórico Max Weber descreveu há cerca de cem anos como “desencantamento do mundo” em seus estudos, Neil Gaiman “vira o jogo” contra si mesmo e apresenta o racionalismo como uma divindade e o misticismo da antiguidade somente foi deslocado. Afinal, qual a diferença entre curvar-se para Odin ou para a internet? Foi sagaz da parte do autor notar que, afinal, a mentalidade que um dia criou os deuses foi a mesma que desenvolveu a ciência – e, assim, através de um universo fantasioso, “American Gods” mostra que não somos tão diferentes das civilizações de mil, dois mil anos atrás e a essência humana permanece intocada.
O romance criado por Neil Gaiman oferece um olhar para os deuses como materialização da humanidade, mostrando-os lado a lado com mortais – essa visão, na realidade, é um verdadeiro resgate das representações antigas, que pintavam as divindades de uma forma tão real quanto qualquer pessoa que estivesse caminhando sobre a terra, com falhas de caráter e nuances mais profundas do que um mero “ser especial”. “American Gods” quebra o invólucro das imagens seladas dos deuses inabaláveis e os tira do lugar comum, desmistificando sua aura intocável e colocando as crenças em seu ponto de origem: os seres humanos.
A saga da série mais se parece com uma dessas antigas histórias gregas que os deuses andam livremente entre as pessoas do que com qualquer representação iluminada e intangível.
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Críticas sutis
Em um momento de tensão política e social em todo o mundo, “American Gods” também mostra que um de seus lados é a resistência. Nenhuma representação acontece “por acaso” e mesmo as cenas que mais chocam são uma tentativa de falar mais do que está sendo mostrado ali.
Quando o terceiro episódio foi ao ar um dos momentos mais comentados foi a representação de sexo gay – mas isso era apenas o primeiro nível de apreensão de algo mais denso. Salim é um imigrante muçulmano vindo de Omã e se entrega a um Jinn, uma espécie de demônio mítico que habita as lendas do mundo árabe. Essa breve descrição já abre as portas para diversas camadas de sentindo: a crescente xenofobia nos Estados Unidos, o preconceito contra as religiões islâmicas, a perseguição que ocorre contra homossexuais no oriente médio são alguns exemplos do que está além do que as câmeras mostram. “American Gods” é mais do que se mostra e quanto mais fundo se olha, mais se apreende de sua narrativa.