"Mais Do Que Isso": suicídio de jovem revela trama obscura de ficção científica
Com um olhar sensível sobre a adolescência, autor de "Mais Do Que Isso" desencadeia enredo inspirado em "Matrix" a partir de suicídio dramático
“Aqui está o garoto, afogando-se”. Logo de cara a história do livro pode parecer às avessas: as primeiras linhas do romance já são um verdadeiro soco no estômago. Com um tom obscuro e misterioso crescem as expectativas para desvendar a realidade por trás do suicídio de Seth, mas a narrativa se desdobra em uma aventura de ficção científica que brinca com a morte o tempo todo. “Mais Do Que Isso”, escrito por Patrick Ness, propõe um mergulho nas angústias adolescentes com um toque de aventura e olhar esperançoso sobre “segundas-chances”, mas não convence em um nível mais denso de narrativa.
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“ Mais Do Que Isso ” conta a história de Seth, um jovem que comete suicídio afogando-se no mar, mas acaba acordando em um cenário decadente que julga ser o inferno. Explorando os limites daquele pesadelo, ele acaba encontrando outras duas pessoas, Regine e Tomaz, que o alertam sobre os perigos do “motorista”, um sentinela da morte. Logo o leitor se vê envolvido pelo universo ilógico e perturbador no qual o trio vive em uma constante luga pela sobrevivência, até que a verdade é revelada: Seth está vivo e, por algum motivo, conseguiu escapar de um sistema macabro que retém todas as pessoas em estado de suspensão, enquanto suas vidas são transferidas para um ambiente on-line. A partir desse ponto os jovens procuram por respostas e uma saída daquele “inferno na terra” que estão experimentando.
Flerte filosófico.
O primeiro tomo do livro é angustiante e perturbador, mas o excesso narrativo pode acabar prejudicando a atmosfera que Patrick Ness cria nesse primeiro capítulo. Nele o autor flerta levemente com o estilo de Franz Kafka pelo cenário que é onírico e sombrio ao mesmo tempo, sobretudo nos primeiros momentos de Seth depois de despertar. Ele constrói uma cidade totalmente inóspita de cinzas que minam as esperanças e reflete a mentalidade desse jovem que acredita estar morto. Esse início demorado e quase exaustivo pode, também, evocar o inferno plano de cotidiano criado por Jean Paul Sartre na peça “Entre Quatro Paredes”, mas a suspeita logo se desmistifica com o início de uma trama de ficção científica que pega o leitor de surpresa. A transição abrupta, que vai da introspecção para a aventura em um piscar de olhos, pode ser um ponto de desistência do livro pela quebra de expectativas.
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“De onde eu já vi essa história?”
Uma pessoa que um dia desperta para a realidade e descobre que há uma conspiração tecnológica que está privando seres humanos de viverem livremente e, então, tenta lutar contra esse sistema pela libertação. Parece familiar? O lado ficção científica de “Mais Do Que Isso” muito se assemelha com a história de “Matrix”, mas sem grandiosidades ou hackers sofisticados. Ao invés disso há um grupo de adolescentes que vivem escondidos e utilizam todas as suas forças para se livrar desse jogo sinistro. A forte inspiração de Patrick Ness no clássico do cinema tem seu mérito, apesar disso: mesmo com alguns deslizes e furos, a história cumpre seu papel e se adequa à proposta, além de garantir o desenvolvimento dos heróis do livro.
Sensibilidade
O maior acerto do autor foi na criação das personagens, sobretudo o trio principal: Seth, Regine e Tomasz começam tímidos, mas paulatinamente ganham forças e crescem na história. O protagonista que inicialmente vive na sombra da morte tentando digerir uma culpa, eleva-se no final como alguém corajoso e que assume riscos para tentar mais uma vez e se dar mais uma chance, mas ainda assim ele permanece real, com dúvidas, desconfianças e medo como qualquer pessoa comum.
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Ainda que, infelizmente, Patrick Ness não tenha explorado mais o potencial de contemplação filosófica da história e não se aventure em um estilo narrativo mais polido, “Mais Do Que Isso” ganha pela sensibilidade e naturalidade ao falar da adolescência e seus conflitos através dos olhos de Seth, que termina o livro como uma nova pessoa, mas ainda fiel a si mesmo.