A pornochanchada reinou absoluta no cinema nacional nos anos 70. Durante o período, de acordo com dados da pesquisa do professor do Instituto de Economia da UFRJ Fábio Sá Earp e da produtora  Helena Sroulevich, o público comprava 200 milhões de ingressos anualmente para ir ao cinema, número diminuiu pela metade na década seguinte. Esses dados são referentes às produções nacionais e internacionais, mas a pornochanchada era grande incentivadora desse número.

Leia também: Intenso e sensorial, “Aquarius” é muito mais do que metáfora política

Divulgação
"Tatuagem" quebrou barreiras no cinema nacional ao retratar casal gay

O estilo ganhou popularidade ao misturar a estética cinematográfica com erotismo e, até hoje, é responsável por alguns dos maiores filmes produzidos no Brasil, como “ A Viúva Virgem ” e “Bem Dotado, o Homem de Itu”. Mas, com os anos 1980 veio a decadência da pornochanchada, com o esgotamento do formato. O período político do Brasil não ajudava, e vimos a produção de cinema nacional despencar de maneira absurda no início dos anos 1990 com a extinção da Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes) e do Concine (Conselho Nacional de Cinema).

Leia também: Nu artístico empodera, opina fotógrafa que dessexualiza nudez em série de fotos

Com a criação da Lei do Audiovisual, porém, o cinema ganhou novo fôlego e voltou a ter bons índices, marcando o início da fase conhecida como “ Retomada ”.  No entanto, os primeiros filmes lançados no período não tinha cenas de sexo expressivas.   “A representação do sexo no cinema brasileiro mudou muito desde os anos 1980. O [diretor] Guilherme de Almeida Prado fala que, uma vez existindo o cinema de sexo explícito, não havia muito mais necessidade para nudez e sexo no cinema, pois o público que queria isso já estava contemplado”, explica Gabriel Carneiro, jornalista e pesquisador de cinema.

Ele fala que isso foi radicalizado no período de retomada. “O público que se interessava por sexo e nudez era, essencialmente, o público popular masculino. A classe média e alta, genericamente, sempre teve preconceito com cinema brasileiro”, continua. Sendo assim, houve um esgotamento do tema e os filmes pararam de contemplá-lo , ou minimizaram seu tratamento nos filmes.

Leia também: Sexo e cinema: como a sétima arte evolui o tema ao longo dos anos

Independência

O mesmo, porém, não aconteceu com o cinema independente. “Na medida em que o cinema independente não se constrói a partir de uma lógica de mercado que inclui o lucro como retorno obrigatório de seus lançamentos, ele pode quebrar as barreiras do sexo”, explica Gabriela Saldanha, professora na área de produção cinematográfica e do cinema brasileiro. Gabriela também atua como consultora de conteúdo para projetos educativos e culturais com foco em audiovisual e pesquisa o cinema Pernambucano há 10 anos.

undefined
Divulgação

Pôster de "Amarelo Manga"

O estado, por sinal, é responsável por algumas das obras mais interessantes e disruptivas do cinema atual. Cláudio Assis despontou como um dos principais cineastas da atualidade, responsável por títulos como “ Amarelo Manga ”, “Febre do Rato” e “Baixio das Bestas”. “Nesses filmes, o sexo é força motriz. O cartaz de Amarelo Manga, inclusive, estampa a imagem da genitália feminina acrescentada pela frase, “o ser humano é estômago e sexo”, explica Gabriela.

Já Gabriel destaca o cineasta Carlos Reichenbach, um dos percursores do cinema da Boca de Lixo . “Ele  sempre fez questão de colocar nudez e sexo em seus filmes e sempre com um viés político, seja de empoderamento frente ao próprio personagem, seja de afronta ao moralismo, à opressão”. Gabriel comenta que essas características, comuns a época em que a Boca prosperou (até os anos 1980), não estão mais presentes no cinema de hoje. Mas ele destaca ainda o trabalho de Thiago Mendonça em “Jovens Infelizes”, ou Gabriel Mascaro em “Boi Neon”. Mas ele não deixa de pontuar o que esses filmes tem em comum: são independentes, feitos com baixo orçamento e sem a pretensão de se tornarem grandes sucessos de público.

Claro que almeja-se que os filmes sejam bem sucedidos, consigam financiamento e passem no maior número de cinemas possível, mas, como bem lembra Gabriela, “o cinema independente não faz concessões em relação à sua essência. (...) Essa outra perspectiva de realização cinematográfica permite que identidades, comportamentos, hábitos sejam constantemente questionados e ressignificados. É nesse sentido que o sexo se faz presente no cinema independente”, complementa.

A pornochanchada, apesar de mostrar sexo, não tinha o intuito de problematizá-lo ou inseri-lo num contexto onde pode fornecer uma representação social. “As pornochanchadas, ou mesmo os tons acinzentados da indústria, são mais superficiais quanto às suas propostas em discutir o sexo e a sociedade, inviabilizando, inclusive, o papel da mulher na relação, utilizando-se de recursos de composição de personagens caricatos, onde existe o bom e o mal, sem nuances”, explica Gabriela.

Já os autores atuais rompem com esse formato, e o fazem de maneira brilhante. O sexo deixa de ser meramente retratado como uma exaltação do prazer e passa a ser uma ferramenta de debate de representação social, de repressão, abandono, luta de classes e empoderamento. O momento em que Clara ( Sônia Braga ) transa com o garoto de programa em “ Aquarius ”, por exemplo, é a maneira que a personagem encontra de retomar o controle, quando ela sente que o movimento ao seu redor a está forçando em uma direção contrária a que ela quer.

Clara (Sônia Braga) usa o sexo para ter controle de sua vida em
Reprodução
Clara (Sônia Braga) usa o sexo para ter controle de sua vida em "Aquarius"

“Cláudio Assis busca declaradamente em seus filmes questionar esse lugar proibido e doméstico do sexo”, exemplifica Gabriela. “Não digo que os filmes pernambucanos mencionados foram construídos a partir da premissa do sexo, ao contrário das pornochanchadas, mas que o sexo ganhou o primeiro plano das cenas, afirmando-se como um ato emanado por corpos políticos”, explica a pesquisadora.

Hilton Lacerda , outro destaque pernambucano, colaborou com Cláudio Assis em seus roteiros. Em sua estreia como diretor, porém, ele extrapolou mais ainda a representação do sexo ao retratar um casal gay em “ Tatuagem ”. O filme traz a história de amor entre o soldado Fininha (Jesuíta Barbosa) e o agitador cultural Clécio ( Irandhir Santos ), líder do grupo de teatro Chão de Estrelas nos anos 70. Por retratar um grupo de artistas em um período de repressão política, o filme se dispõe a mostrar que o nu, o sexo e o amor são tabus apenas quando alguém assim os determina. “Creio que quanto mais abrirmos o panorama acerca do sexo no cinema nacional, tomando os filmes da pornochanchada como ponto de partida, podemos abrir um caminho de análise para o sexo no cinema brasileiro também como um recurso de diálogo, para se discutir muito mais do que prazer, perversão, pudor, moralidade ou imoralidade”, completa Gabriela.

No final das contas, o que o sexo no cinema nacional independente atual faz é oferecer um novo olhar para o ato que a pornochanchada não mostrou. “Sinto (no cinema independente) muito menos uma fetichização do sexo e mais uma ideia de naturalidade. Ou seja, o sexo não precisa ser bonito, limpo, romântico”, conclui Gabriel.

Leia também: Sexografia: Série de reportagens do iG discute nossa relação cultural com o sexo

    Mais Recentes

      Comentários

      Clique aqui e deixe seu comentário!