“As pessoas precisam ver a mulher negra como uma mulher, não como um objeto de prazer, um pedaço de carne”. É com esses olhos que Gabriela Gaabe, mulher, negra e atriz, enxerga um fim, ou pelo menos uma diminuição na hipersexualização que atinge as mulheres negras não só na vida como um todo, mas também no entretenimento brasileiro.
Atuando, literalmente, já há algum tempo no teatro, Gabriela contou ao iG que as artes cênicas a acolheram no momento em que o racismo institucional e naturalizado no Brasil passou a atingir sua filha, negra e ainda criança. “Meu processo de acolhimento dentro do teatro aconteceu porque minha filha sofreu preconceito na escola. Chegou em casa dizendo que não queria mais ser negra porque falavam que a cor dela era suja e o cabelo dela era feio”, conta. Segundo a atriz, a chegada da atuação em sua vida veio como um reflexo da busca por um acalanto para a própria filha, sem esperanças.
Gabriela, depois de ver que o racismo estava em vias de comprometer o bem estar de sua família, pensou no teatro como uma forma prática e rápida de acabar com a ideia de que ser negro é algo ruim. “Comecei a procurar referências de mulheres negras e a pesquisar peças de teatro que eu pudesse levar minha filha para ver atrizes negras como ela”, revela. “Por isso procurei o teatro infantil. Posso interpretar uma princesa negra, por exemplo, e mostrar para a minha filha e mais crianças que mulheres negras podem representar muitas coisas”, explica.
Não é novidade para ninguém que atores e atrizes negros são sempre os “motoristas” e as “empregadas” nas novelas brasileiras e que a perspectiva de atuação dificilmente vai além disso. Para as mulheres em especial, além do estereótipo de empregos subalternos como de empregadas domésticas, garçonete ou então o da menina pobre da favela que sempre tem de batalhar muito para subir na vida, há também o da “mulata sensual e insaciável”, da “cor do pecado”.
Esses papéis podem ser facilmente exemplificados com a lembrança de atuações como a de Cris Vianna , que deu vida à personagem Dagmar dos Anjos, por exemplo. Uma mulher negra que reitera o clichê da “mulata sensual” por meio de muitos estereótipos levantados no papel da novela, mas principalmente com a cena de banho de mangueira na laje da casa na qual mora a personagem. Dagmar é uma mãe solteira e pobre que se envolve com dois homens na trama de “Fina Estampa” (2011), de Aguinaldo Silva.
Ainda que essa personagem não apresente nem metade do que é a hipersexualização da mulher negra no entretenimento, é válido lembrar que não é só na televisão que ela acontece. Esse fenômeno, enquanto resultado de um pensamento construído e enraizado pelas instituições sociais, acontece não só nas telinhas, mas também no cinema e até no mundo dos cliques, flashes e dos fundos brancos.
Carolina Zacharias, jovem modelo mulher e negra, quando questionada sobre a experiência pessoal no trabalho, não escondeu que é desconfortável lembrar que alguns tipos de proposta de trabalho só foram ofertadas a ela essencialmente pelo que ela é: mulher e negra. “Se eu fosse outro tipo de mulher, esse tipo de proposta não apareceria. Foi muito chato. Você se sente mal mesmo você sabendo que não tem culpa. Você se sente menor de alguma forma. Parece que por um minuto você se entrega pra esses preconceitos”, relata. Ainda que tenha havido o desabafo, a modelo preferiu não ir a fundo nos detalhes sobre as propostas.
Racismo: a raiz da hipersexualização
A historiadora e professora do Instituto Federal de São Paulo (IFSP) Juliana Serzedello, mulher, negra e especialista em racismo, ressaltou que no Brasil, essas instituições sociais atingem diretamente o modo como as mulheres negras são vistas. “A maioria das mulheres negras sofrem o estereótipo de serem feias. Porque o cabelo delas é feio, o corpo, a pele. Ou então, quando elas alcançam os parâmetros de beleza aceitáveis dentro da sociedade racista, a gente pensa naquelas figuras tipo a mulata, passista de carnaval. A mulher negra extremamente magra, porém com quadris largos, que vai ter um determinado tipo de cabelo que é cacheado, mas sob controle”, explica. Para Juliana, ainda que exista um olhar que exalta e não demoniza a estética negra, ele ainda é problemático. “Mesmo dentro do que é considerado beleza comercial negra, é opressor”, termina.
A historiadora, ainda em entrevista ao iG Gente , pontuou outros estereótipos que limitam e reduzem a imagem das mulheres negras a um alcance minúsculo na sociedade e ressaltou, inclusive, que eles só existem por um fator peculiar (e óbvio): a cor da pele – que, nas condições de racismo, funciona como um agravante.
Além do clichê da “mulata sensual”, “quente” e “insaciável” atribuído à mulheres negras, há também os de força e resistência, dois que acabam praticamente legitimando uma violência. “O estereótipo da mulher negra é, muitas vezes, de força. A mulher negra é aquela que “aguenta”, “sustenta sozinha sua família”, portanto não precisa de um companheiro. Essas mulheres sofrem o estereótipo da solidão, que é seríssimo”, conta. “A mulher negra é aquela que não se casa, ou quando se casa, é com um alcoólatra, mulherengo ou com um cara que não assume os filhos, que bate, porque ela é forte, né? Ela aguenta. Ela nasceu pra isso”, relata.
A representatividade negra feminina no entretenimento (ou a falta dela?)
Ainda que exista um maior número de intérpretes negras conseguindo papéis nas tramas que entretêm os brasileiros, a quantidade ainda é pequena e se limita à lembrança de poucos nomes, já que o destaque não vai muito além do holofote que está em cima das atrizes negras Taís Araújo, Camila Pitanga, Sheron Menezes e algumas outras de nomes conhecidos – é fato que essas atrizes fazem um trabalho maravilhoso, mas ainda assim são (ou já foram em algum momento) vítimas de um racismo sexualizador e estereotipado guardado entre os papéis dos scripts dados à elas, que reforçam uma ideia que é tomada como verdade, mas que não é.
Um bom exemplo recente e conhecido que exemplifica esse fenômeno da hipersexualização de mulheres negras é o seriado “Sexo e as Nêgas”, dirigido e escrito por Miguel Falabella , que foi ao ar em setembro de 2014. Baseado no sitcom americano “Sex and the City”, que conta sobre a vida íntima de quatro amigas brancas da classe média alta de Nova York, a história dividida em episódios por Falabella falou de quatro amigas, mulheres e negras, moradoras do subúrbio do Rio de Janeiro, mais especificamente da Cidade Alta de Cordovil, que convivem juntas e se encontram frequentemente no bar de Jesuína, outra amiga, que também comanda a rádio local e narra o enredo.
No entanto, para as mulheres militantes no movimento negro, só o título do seriado bastou para que um grande incômodo e desconforto fossem gerados, o que acabou resultando até numa tentativa de boicote ao programa e numa manifestação que aconteceu na porta da Rede Globo , no dia de estreia. “'Sexo e as Nêgas' não nos representa porque as mulheres negras têm outro destino que não só a sexualização de seu corpo. Essas mulheres se organizam e dizem não para uma tentativa racista e machista de, mais uma vez, contribuir com um estereótipo que é dado à mulher negra no Brasil”, disse a militante da organização do Levante Popular da Juventude (LPJ) Beatriz Lourenço, no vídeo feito no dia 16 de setembro de 2014, que registrou o protesto feito na porta da emissora em São Paulo.
A sexualização das mulheres negras é apenas um dos sintomas de um racismo institucionalizado e que econtra eco nas nossas novelas, séries e filmes. A importância da militância e do trabalho de historiadores como Juliana Serzedello é justamente a de tirar a sociedade dessa incômoda letargia.