A novela “Travessia” estreou na Globo, no dia 10 de outubro, com promessas no elenco e a responsabilidade se segurar a audiência da faixa das nove após o sucesso de "Pantanal". Mas a produção foi ganhando críticas dos telespectadores. Uma em especial atinge Jade Picon e Chay Suede : o sotaque.
A ex-BBB paulista interpreta Chiara, uma carioca da Zona Sul que abusa das gírias dos mais jovens. Já o ator capixaba faz Ari, um maranhense, do interior do estado, que gosta muito de usar termos próprios da região.
Segundo os especialistas Wendel Santos, professor de Letras da UFMA e doutor em Linguística pela USP, Luiza Alvim, professora substituta da Escola de Comunicação da UFRJ e mestre em Letras com pesquisa no audiovisual, e Marcelo Módolo, professor do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH-USP, os artistas tentam, mas entregam falhas na reprodução dos sotaques do Rio de Janeiro e do Maranhão, respectivamente.
Chay Suede e o sotaque maranhense
Exagerado e caricato: é assim que Wendel Santos, que além de linguista é maranhense, define o vocabulário que Chay Suede tenta trazer para Ari. “A partir do laboratório que ele [Chay Suede] fez [em São Luis], a novela representa esse modo de falar de maneira exagerada, tornando aquilo, de certa maneira, caricato”, explica o especialista.
O linguista ainda diz que o exagero está, principalmente, na quantidade e na forma em que o ator usa termos próprios da região: “Quando ele fala ‘pequeno’ e ‘pô’, ele usa, algumas vezes, fora de um contexto”. Wendel explica que os ludovicenses usam tais termos, mas não para todos os momentos, como faz Ari e até Brisa ( Lucy Alves
) com “mermã”.
“Quando ela [Lucy Alves, que é paraibana] usa ‘mermã’, é muito exagerado. Acho que, nesse momento, ela quer aparentar uma espécie de 'maranhensidade'”, critica o linguista.
O especialista exemplifica e conta que chama alguém de “pequeno” quando precisa chamar a atenção da pessoa, tanto em contextos negativos como positivos, mas não como uma saudação corriqueira como fazem os personagens.
“Quando eu olhei para o Ari e vi alguém tentando imitar o modo como eu falo... Não era alguém me representando, era alguém tentando imitar o modo como eu falo, o que me leva a dizer que essa pessoa não é ludovicense”, ressalta Wendel.
Em seguida, o especialista destaca que a atriz carioca Drica Moraes, que interpreta a maranhense Núbia, também tem equívocos no sotaque e no vocabulário. “Parece que ela se espelhou na fala de pessoas mais velhas. Tem alguma aproximação, mas eu acho que eles passaram muito longe de representar a fala de uma pessoa ludovicense mais velha”.
Voltando para Ari, Wendel lembra que o personagem já chamou a mãe, Núbia, de “mainha” algumas vezes, algo que não é praticado por ele, maranhense. O linguista diz que isso é consequência de uma visão sudestina e sulista de tratar todos os nordestinos como se viessem do mesmo lugar. “A gente não usa ‘mainha’, para se referir a mãe. Acho que a crítica está em colocar todo o nordestino no mesmo saco. Então, há vários deslizes da novela nesse aspecto”, analisa.
Wendel até pondera e diz que, de certa forma, Ari, Brisa e Núbia não deixam de remeter aos maranhenses: “Quando ele [Chay Suede] usa ‘pô’ ou ‘pequeno', está dizendo para a gente que os falantes maranhenses se identificam com esses termos. Então, a gente também não pode levar essa discussão a ferro e fogo e dizer que está tudo errado”.
O especialista pontua que a evolução sobre sotaques pode acontecer ao dar espaço para atores do estado. “Um coisa que me chamou muito atenção e que eu acho esquisito é que na novela tem o Rômulo Estrela, que é um ator que é ludovicense. Provavelmente, o Rômulo usasse melhor esses termos. Por que não um ludovicense para representar outro?”.
Jade Picon e o sotaque carioca
“Eu não conhecia a Jade Picon do 'BBB'. Então, a primeira vez que a vi foi na novela e quando assisti à cena pensei: ‘ela é paulista, ela está fazendo personagem carioca, mas ela é paulista’”, narra Luiza Alvim, especialista em diálogos no audiovisual.
Ela, que também é carioca, destaca o chiado de Chiara. “Ela não fica parecendo uma carioca de zona sul, para fazer esse personagem a pessoa tem que ter um chiado mais natural”.
Marcelo Módolo concorda com Luiza e ainda aponta que Jade, muitas vezes, se perde e não consegue evitar o sotaque paulista. “Eu acho que ela está se esforçando, mas precisa de um treinamento melhor para essa questão do sotaque. Ou pelo menos para marcar algumas coisas que caracterizam melhor uma carioca, como a questão da sibilante, o que sempre se vê nos cariocas, a abertura de algumas vogais, que caracterizam essa maneira de falar e do ‘r’ mais arrastado”, explica.
O linguista maranhense, Wendel, que viveu por 10 anos em São Paulo, complementa ao dizer que sente a presença do “r” paulistano na fala de Chiara, uma personagem carioca: “Ela acaba escorregando nessa realização e, às vezes, aparece essa marca linguística, que para mim é muito característico da fala de paulistanos do Centro”.
“Ela me parece muito aquela paulistana patricinha do centro expandido de São Paulo, de Higienópolis. Ela não me parece uma pessoa que é carioca”, ressalta o especialista ludovicense.
Wendel também concorda que o chiado da personagem da ex-BBB vem carregado. “Isso revela aquele estereótipo em relação à fala dos cariocas. Eles têm outras formas linguísticas que os caracterizam, mas é essa forma, que acaba também sendo bastante caricata na novela”.
Marcelo Módolo acredita que a pouca experiência e uma possível insegurança de Jade na atuação refletem no sotaque que a recém-atriz tenta dar para Chiara. “Ela exagera em alguns pontos e em outros fica muito claro esse sotaque paulistano. Eu acho que é a insegurança, ela ainda não sabe trabalhar nisso”, diz o professor da USP, que ainda faz uma crítica à preparação da novela. “Ela tem que ser melhor orientada, tem que ser mais trabalhado esse sotaque, para que se consiga ter um resultado melhor”.
Pessoas não locais reproduzindo sotaques
Jade Picon e Chay Suede estão reproduzindo sotaques de regiões que não pertencem. Deste modo, os três especialistas concordam que há uma dificuldade de se fazer, com maestria, um sotaque diferente do de origem.
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“Isso é muito difícil. Para você perder um sotaque tem todo um trabalho de fonoaudiologia e não acontece só com eles, na verdade, isso acontece com um monte de ator”, analisa Luiza, que complementa. “No caso da Jade, especificamente, ela ficou muito visada, porque obviamente teve toda essa questão: ela não era atriz e foi chamada para ser uma das protagonistas da novela das nove.
Módulo, então, lembra que experiência e técnica nessas horas são fundamentais e finaliza com um exemplo de outra ex-BBB que investiu na carreira de atriz. “Se a gente lembra do jeito que a Grazi Massafera [do interior do Paraná] falava um português bem marcado, caipira, agora dá para ver que ela disfarça muito bem”.
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