“Spencer”, longa que é uma das grandes expectativas do ano e teve a estreia adiada para 3 de fevereiro, começa como um filme de guerra, ou quase: veículos militares, fileiras de verdadeiras tropas uniformizadas, caixas enormes removidas dos carros blindados e com a precisão de uma manobra bélica. Há um duplo sentido na abertura do segundo filme da trilogia de mulheres ilustres de Pablo Larraín (“Jackie”, de 2016, sobre Jacqueline Kennedy, foi o primeiro, e o terceiro ainda está em fase de especulações): um aceno à linguagem de filmes de ação, especialmente os do superbritânico James Bond, e um aviso ao espectador — aqui, neste lugar, nesta mansão de seis andares que se estende pelos verdes campos de Norfolk, na costa da Inglaterra, prepara-se uma batalha. De um lado, a legendária e irredutível família real; de outro, a princesa que, no fim das contas, não queria ser uma princesa.
— Jackie me inspirou e me deu um ponto de vista interessante: um período curto, intenso, é melhor como narrativa, para mim, do que toda uma história de uma pessoa, uma biografia — diz Pablo Larraín. — Há muito tempo venho pensando em Diana Spencer, a princesa triste. Conversei sobre o assunto com amigos na Grã-Bretanha e fiquei animado quando vi o interesse imediato. E com as conversas ficou bem claro para mim onde estava esse período curto e intenso na vida de Diana.
“Spencer” se passa durante três dias no Natal de 1991, em Sandringham, um dos castelos de férias da família real, no auge da tensão entre Diana, o príncipe Charles, a rainha e o resto da família. Dois universos estão claramente adicionados às sequências de abertura — o comboio real prepara a mansão para as festas natalinas, com quantidades exorbitantes de alimentos e bebidas de luxo, e Diana dirige seu modesto carro pelas estradas da região onde ela cresceu. Num momento que estabelece o que realmente estamos vendo, Diana/Kristen Stewart explode consigo mesma, tentando entender o mapa para Sandringham: “Em que merda eu estou?”
A viagem a Sandringham seria o momento da ruptura entre Diana e Charles e, por consequência, entre ela e a família real.
— Algumas pessoas já nascem com um poder, uma energia especial — diz Kristen Stewart, que Larraín escolheu “mentalmente, pelo coração, quando o roteiro nem tinha sido escrito”, para ser Diana. — Ela claramente tinha esse poder de tocar os outros, emocionar. Tinha essa capacidade de se aproximar, desarmar as pessoas, imediatamente criar uma ligação. E, no entanto, a coisa mais triste da vida de Diana é que, na verdade, ela vivia tão isolada, tão sozinha.
O diretor vê o mesmo poder na atriz.
— Quando comecei a pensar em Spencer, eu pensei imediatamente em Kristen Stewart — diz Larraín. — Não era nem bem uma questão de fisicalidade, mas na energia que ela tem em comum com Diana. Como ela, Kristen tem esse poder de fazer as pessoas quererem chegar perto, compartilhar. Eu não tinha vontade de procurar mais ninguém para o papel: era Kristen, mesmo.
O processo de criar a “princesa que não queria ser princesa” foi, nas palavras de Kristen Stewart, “uma parceria muito profunda”. Nascida e criada em Los Angeles, Kristen aprendeu como falar em inglês britânico, com o sotaque das elites, e se portar como uma pessoa nobre.
— Foi tão bom para minha coluna! — admite Kristen, eufórica. — Fiquei com uma postura ótima, me sentia forte, capaz de me mover de um modo novo.
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Além do treinamento e do guarda-roupa, Kristen e Larraín dedicavam-se a um exercício para auxiliar a atriz a compreender melhor o mundo interior de Lady Di: todos os dias, no set, Pablo Larraín punha uma música para tocar e Kristen improvisava, fisicamente, uma emoção diferente dos muitos altos e baixos que Diana Spencer devia estar sentindo naquele momento.
— Era pura improvisação, era ótimo — conta Larraín. — E Kristen nunca sabia que música eu iria tocar.
— E eu morria de medo dessa improvisação — ri Kristen. — Porque eu me preparava para uma interpretação de Diana, mas tudo se tornava mais profundo, e eu de fato estava vivendo o que, eu imagino, ela estava sentindo. Eu me perdia na personagem, não estava mais simplesmente atuando.
A seleção de músicas era eclética: trechos da trilha de Jonny Greenwood, Talking Heads, Miles Davis, Sinéad O’Connor, Lou Reed, Nirvana, entre outros (uma montagem das canções faz parte do filme).
Como em “Jackie”, a narrativa de “Spencer” usa o fim de semana — o “período curto e intenso” — para lançar outros momentos, não apenas da vida de Diana, mas de outras referências da história da Grã-Bretanha.
No “coração mesmo” da narrativa, diz Larraín, está Ana Bolena, a segunda mulher de Henrique VIII, a moça que conquistou o rei e perdeu sua cabeça porque o coração dele era volúvel demais.
— Não gosto de explicar como e por que usei a presença de Ana Bolena — diz Larraín. — Mas digo que a história sempre se repete. Algo que aconteceu 500 anos atrás tem um espelhamento sobre o agora. No coração desta narrativa está o eterno conflito entre o novo e o antigo. Esta fricção constante entre passado e presente, na Grã-Bretanha, eu acho fascinante. Creio que todos os que não são britânicos também ficam intrigados. E Diana é parte dessa narrativa também, uma personagem histórica e forte presa entre as rodas da tradição.