A violência contra LGBT+ no Brasil infelizmente tem disparado em 2020. Apenas no Mato Grosso, segundo o GECCH (Grupo Estadual de Combate aos Crimes de Homofobia), foram registrados 160 boletins de ocorrências de crimes LGBTfóbicos entre janeiro e agosto deste ano. Em comparação com 2019, no mesmo período, foram 77. Houve uma elevação de 108%. 

Lucy Hicks foi uma transexual negra
Reprodução/Organização Equality Utah
Lucy Hicks foi uma transexual negra

Diante desse cenário difícil é preciso resistir. E Lucy Hicks Anderson foi um exemplo inspirador. Mulher trans e negra, ela viveu nos Estados Unidos entre o final do século 19 e metade do século 20. Enfrentou uma sociedade que apoiava a segregação e possuía leis que proibiam e puniam miscigenação, casamentos inter-raciais e cidadãos homossexuais. Quem tentasse desafiá-la, poderia ser preso, submetido a trabalhos forçados e perder os próprios bens. 

Trans desde sempre

Lucy, que nasceu em 1886 e recebeu o nome de Tobias Lawson, era de Kentucky, nos Estados Unidos. Desde muito cedo se autopercebeu como uma menina, sendo que hoje é considerada uma das primeiras trans afro-americanas registradas na História, quando nem ainda existia o termo “ transgênero ”, e prova de que a “ideologia de gênero” não tem fundamento algum. Esse termo foi criado por gente preconceituosa que não admite a diversidade sexual humana.

Porém, se pessoas com identidades de gênero plurais sempre existiram, o preconceito também e Lucy foi descobri-lo assim que cresceu um pouco mais e passou a frequentar a escola. Nessa época, queria ir às aulas de vestido, contrariando os tabus sociais de roupa certa para meninos e meninas. Acabou então sendo levada pelos pais a um médico, que para o espanto deles era um sujeito à frente de seu tempo e que constatou a normalidade da criança.

A partir daí, Lucy passou a ser tratada pela família como queria e cresceu despercebida pela sociedade. No entanto, parece que tudo mudou com a chegada da adolescência. Aos 15 anos, por algum motivo pessoal, talvez por se sentir “sufocada” na pacata cidadezinha de Waddy, onde vivia, deixou tudo para trás e se mudou, sozinha e determinada, para a Califórnia. Trocou a escola pelo serviço de empregada, mas mesmo assim o sucesso lhe encontrou mais adiante.

Rainha das festas

Habilidosa na cozinha, Lucy conseguiu se especializar em panificação e virou chef de cozinha, sendo que ganhou até alguns concursos nessa área. Como também era alta, elegante e levava jeito para recepcionar as pessoas, não demorou muito para que sua fama se espalhasse da casa dos patrões a outras vizinhanças endinheiradas. Assim, tornou-se na cidade de Oxnard, na Califórnia, anfitriã de festas e eventos sofisticados e membro da alta sociedade americana.

Se na vida profissional tudo corria bem, na pessoal não era diferente. Por quase dez anos, Lucy foi casada com Clarence Hicks, seu primeiro marido. Nesse tempo, conseguiu ainda desenvolver habilidades empreendedoras e juntar dinheiro necessário para abrir o próprio negócio, um bordel com ares de pensão de luxo que popularizou sua imagem, mas também rendeu muitas polêmicas, principalmente quando a Justiça descobriu que ali eram vendidas bebidas ilegais.

Como a Lei Seca (de proibição de bebidas alcoólicas) estava em vigor nos Estados Unidos, Lucy acabou sendo detida. No entanto, por ser uma empresária conhecida, querida e geradora de muitos empregos, acabou solta após a população protestar a seu favor. O episódio contou até mesmo com a intervenção de Charles Dolon, o principal banqueiro da cidade. Ele pagou a fiança de Lucy e teria alegado que precisava do talento dela para um jantar em seu palacete. 

Ícone de resistência

Lucy declarou publicamente que morreria mulher
Reprodução/National Archives-Agência dos EUA
Lucy declarou publicamente que morreria mulher

De volta à cena, Lucy conduziu sua vida normalmente até 1945, quando sofreu uma injustiça que hoje não passaria impune e a consagrou como um ícone de resistência. Recém-casada com o oficial da Marinha Reuben Anderson, ela foi abrigada a passar por exames clínicos após seu bordel ter sido denunciado às autoridades como um foco de infecções sexualmente transmissíveis. Lucy não se prostituia, mas a Justiça assim a tratou por conviver com profissionais do sexo.

No médico, foi atestada como um homem e depois disso processada por vários crimes. As autoridades alegaram que Lucy cometeu “falsidade ideológica”, “fraude” por ter recebido dinheiro previdenciário (a que tinha direito) como esposa de militar e “infração” por não ter se apresentado para o alistamento obrigatório. Passou ainda pelo sofrimento de ter seu casamento cancelado, ser condenada a cumprir pena e impedida de se vestir como mulher.

Sem temer por mais nada, respondeu então aos acusadores: “Desafio qualquer médico do mundo a provar que eu não sou uma mulher. Vivi, me vesti e agi exatamente como aquilo que sou, uma mulher”. Lucy cumpriu sua sentença, tentou reconstruir sua vida, mas foi ameaçada e expulsa da cidade que antes a respeitava tanto e só encontrou alguma paz quando se mudou com Reuben, que não a deixou, para Los Angeles, onde viveu silenciada até morrer, em 1954.

Fontes: Site legacyprojectchicago.org e livros “Black on both sides: a racial history of trans identity”, de C. Riley Snorton; “Trans History”, de Tess de Carlo; “History vs Women: The Defiant Lives that They Don't Want You to Know”, de Anita Sarkeesian e Ebony Adams; “Handbook of LGBT Elders: An Interdisciplinary Approach to Principles, Practices and Policies”, de Debra A. Harley e Pamela B. Teaster.

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