No Brasil, segundo o Atlas de Violência 2020, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), entre 2008 e 2018 houve um aumento de 11,5% na taxa de homicídios de pessoas negras. O risco de ser assassinado é 74% maior para homens negros e 64% maior para mulheres negras. O número de mortes de não-negros no país caiu 12,9%.
Se o cenário atual assusta, imagine o quão terrível era no passado, quando a violência explícita contra pessoas negras era permitida ou tolerada. O caso de um jovem africano chamado Ota Benga é um dos exemplos mais tristes das atrocidades cometidas. No começo do século 20, ele foi vendido para um religioso, torturado e exposto como atração em diversos lugares, tendo ficado conhecido em um zoológico dos Estados Unidos. Nessa época, tinha apenas 23 anos.
A vida na África
Benga pertencia ao povo Mbuti, um dos mais antigos da região do Congo, na África. Morava em uma aldeia e tinha família e amigos. Seu sustento vinha da caça e do que coletava da floresta, considerada sagrada pelos locais. Os Mbuti tinham sua própria cultura, costumes, religião e conhecimentos diversos. Viviam em uma sociedade igualitária, em que as mulheres eram respeitadas, possuíam os mesmos poderes dos homens e participavam das decisões.
Tudo isso foi interrompido com uma invasão no final do século 19. Liderada pelo rei Leopoldo II da Bélgica, uma milícia formada por soldados e mercenários fortemente armados atacou os habitantes locais com o objetivo de dominá-los e explorá-los para obter seus recursos naturais, sendo a borracha o principal deles. Conhecidos como um “exército brutal”, os invasores queimaram casas, estupraram mulheres, assassinaram crianças e torturaram homens. Há relatos e até fotografias de africanos que foram mutilados e exibidos como troféus.
Nesse massacre, a esposa e os dois filhos de Benga foram executados e ele só sobreviveu porque estava fora, em uma expedição de caça. Porém, não permaneceu muito tempo a salvo. Foi capturado por traficantes de escravos e vendido em 1904 para o missionário e também explorador e comerciante de africanos Samuel Phillips Verner. Americano, Verner estava na África para encontrar, na sua visão, “tipos excêntricos” para uma exposição nos Estados Unidos. Ao encontrar Benga, o comprou por meio quilo de sal e um pedaço de tecido.
Inferno na América
Levado para os EUA, Benga, que tinha cerca de 1,50 m de altura, foi apresentado junto com outros jovens negros como um “pigmeu”. O termo era usado pelos exploradores da época de forma estratégica. Classificados assim, os africanos de estatura baixa de tribos isoladas e pouco conhecidas podiam ser explorados como criaturas não humanas e inferiores. A imprensa americana também chegou a noticiar Benga como o “único e genuíno canibal da América”.
Depois de ser exposto em uma feira mundial como parte de uma coleção “selvagem”, Benga ainda acompanhou algumas expedições colonialistas na África e foi levado para Nova York, onde por um tempo foi apresentado no Museu Americano de História Natural. Porém, como não se adaptou e Verner achava que poderia fazer mais dinheiro com ele, decidiu transferi-lo em 1906 para o Zoológico do Bronx. No início, sua função era ajudar a tratar dos animais.
No entanto, como atraia a curiosidade dos visitantes, o diretor do zoo, William Hornaday achou melhor transformá-lo no espetáculo “O Elo Perdido”. Colocou-o dentro da jaula dos macacos com ossos, uma rede e um arco com flecha. Durante apresentações humilhantes e muito maltratado, Benga era obrigado a interagir com um orangotango treinado e, sem entender as gargalhadas e gestos desumanos, também abria a boca para exibir seus dentes lixados.
Escravidão velada
Com 40 mil expectadores diários na cidade mais importante do país, não demorou muito para que Benga atraísse também a atenção de pessoas dispostas a defendê-lo e pedir o fim daquela monstruosidade. Os primeiros a se manifestar foram religiosos afro-americanos e com a repercussão do caso nos jornais, o zoológico, pressionado, acabou encerrando a apresentação.
No final de 1906, após uma petição feita ao prefeito de Nova York, Benga foi libertado, o que não era igual a estar livre. Sob custódia, foi enviado primeiro a um orfanato e depois a um seminário teológico a fim de ser “educado” e transformado em um “cidadão”. Para ser aceito pela sociedade, como diziam a ele, precisou aprender inglês, adotar os costumes, os modos e as roupas dos americanos e arranjar um emprego, que conseguiu em uma fábrica de tabaco.
Com suas origens completamente eliminadas, Benga então estava pronto para decidir sobre seu futuro. Com o sonho de voltar para a África, ele então passou mais dez anos levando uma vida que não lhe pertencia. Lutou, mas não teve um final feliz. Em 1914, com a chegada da Primeira Guerra, seus planos foram interrompidos, pois as viagens foram adiadas por tempo indeterminado. Tentou resistir por mais dois anos, mas em depressão se suicidou com um tiro. Tinha entre 32 e 33 anos. Foi sepultado sem identificação e este ano, mais de um século de sua morte, recebeu um pedido de desculpas póstumo e tardio pelo zoológico que o explorou.
Fontes: Sites The New York Times, BBC, Encyclopedia Virginia, Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, Missouri Historical Society; e livros “Spectacle: The Astonishing Life of Ota Benga”, de Pamela Newkirk; “Ota Benga under My Mother's Roof”, de Carrie Allen McCray; “Raw Deal: Horrible and Ironic Stories of Forgotten Americans”, de Ken Smith.