Antes de falar sobre qualquer assunto nesta entrevista, Aline Borges quis registrar um agradecimento público aos pais, Maria Helena, de 80 anos, e Mariano Borges, de 92, leitores assíduos do EXTRA: “Eu não seria nada se não fosse o amor que eles me deram”, disse ela, já emocionada e começando um papo que duraria mais de uma hora antes de posar para as fotos deste ensaio. Aos 47 anos, com mais de 25 deles de carreira, ela experimenta hoje o maior reconhecimento que já teve como atriz com a Zuleica de “Pantanal”. Quem a vê protagonizando cenas fortes na novela pode nem imaginar como foi sua caminhada até aqui.
+ Entre no canal do iG Gente no Telegram e fique por dentro de todas as notícias sobre celebridades, reality shows e muito mais!
— Sou cria de Parada de Lucas, morava quase que em uma comunidade. Era um terreno grande da família onde tinham vários barracos, uma vida supersimples. Lembro que quando chovia muito a gente tinha que correr para levantar tudo por conta de enchentes — recorda Aline, que aos 9 anos se mudou para Campo Grande depois que os pais compraram um apartamento financiado a perder de vista pela Caixa Econômica: — Quando chegamos ao condomínio, andei de elevador pela primeira vez e foi uma coisa! Eu e meus irmãos parecíamos uns bichos do mato, sabe? Era algo distante da nossa realidade.
Quando começou a fazer teatro, depois de ter se apaixonado pelos palcos em um festival da escola aos 11 anos, chegou a ouvir do pai: “Minha filha, não sonha com isso, não é pra gente”. A última mulher a nascer dos cinco filhos do maranhense Mariano e da carioca Maria Helena, no entanto, seguiu batalhando pelo sonho e hoje se orgulha da trajetória:
+ Siga também o perfil geral do Portal iG no Telegram !
— Este momento atual da minha vida, o auge da carreira, que é estar numa novela das nove, chegou depois de semear um caminho longo e árduo. A minha origem não me dava base para acreditar que isso era possível. Mas, ao mesmo tempo, internamente, nunca duvidei que meu sol ia brilhar.
Televisão nem era tanto o foco da carioca, a pretensão de Aline era mesmo viver de arte, da forma como conseguisse. E encontrou no teatro tal realização: começou com espetáculos infantis, viajou pelo Brasil e foi completando cursos livres durante a carreira. A faculdade de Artes Cênicas, no entanto,não saiu da lista de projetos, e é uma vontade que existe até hoje:
— A minha formação é da vida, na ralação. Até bem pouco tempo era uma frustração pra mim não ter me formado porque eu sabia que era importante para os meus pais. Mas entendi que o diploma não vai determinar meu potencial. Fui fazendo do jeito que dava, mas não deixei de estudar nem de trabalhar. Ainda tenho vontade de fazer Artes Cênicas. Pelos meus pais, mas por mim também.
Quando começou a fazer teatro, depois de ter se apaixonado pelos palcos em um festival da escola aos 11 anos, chegou a ouvir do pai: “Minha filha, não sonha com isso, não é pra gente”. A última mulher a nascer dos cinco filhos do maranhense Mariano e da carioca Maria Helena, no entanto, seguiu batalhando pelo sonho e hoje se orgulha da trajetória:
— Este momento atual da minha vida, o auge da carreira, que é estar numa novela das nove, chegou depois de semear um caminho longo e árduo. A minha origem não me dava base para acreditar que isso era possível. Mas, ao mesmo tempo, internamente, nunca duvidei que meu sol ia brilhar.
Televisão nem era tanto o foco da carioca, a pretensão de Aline era mesmo viver de arte, da forma como conseguisse. E encontrou no teatro tal realização: começou com espetáculos infantis, viajou pelo Brasil e foi completando cursos livres durante a carreira. A faculdade de Artes Cênicas, no entanto,não saiu da lista de projetos, e é uma vontade que existe até hoje:
— A minha formação é da vida, na ralação. Até bem pouco tempo era uma frustração pra mim não ter me formado porque eu sabia que era importante para os meus pais. Mas entendi que o diploma não vai determinar meu potencial. Fui fazendo do jeito que dava, mas não deixei de estudar nem de trabalhar. Ainda tenho vontade de fazer Artes Cênicas. Pelos meus pais, mas por mim também.
Dos cinco filhos de dona Maria Helena e seu Mariano Borges, as outras duas mulheres concluíram o ensino superior (uma é professora e a outra, nutricionista). Além delas, Aline tem um irmão mais velho e outro com a mesma idade, gêmeo.
— Eu fui a “raspa da panela”. Minha mãe já tinha três filhos quando ela engravidou sem querer e vieram dois, eu sou gêmea. Depois que nascemos fomos criados com muito amor, claro, mas eu não tive uma educação empoderada. Tudo que sobrava vinha pra gente, não tinha essa coisa de “o mundo é seu” — explica ela.
Aos 17 anos, depois de não ter passado na prova para ingressar em uma escola estadual e os pais não terem como pagar uma particular, a atriz foi morar em Juiz de Fora, com uma das irmãs, com quem fez um trato: ajudaria a cuidar da sobrinha bebê e teria seu colégio pago. Lá começou os cursos de teatro. Quando voltou ao Rio de Janeiro, fez teste para entrar no cadastro da TV Globo, mas não conseguiu. Anos mais tarde, depois de ter estudado as técnicas de atuação em vídeo, deu certo. Os primeiros papéis de Aline na emissora foram no programa “Linha direta”, que realizava reconstruções de crimes.
— Comecei fazendo coisas pontuais. Nessa época eu nem tinha consciência da minha identidade racial. Eu ficava buscando fazer papéis destinados a mulheres brancas: a patricinha, a mocinha... E nunca chegava isso pra mim. Era só empregada, copeira, bandida. Eu nem questionava — ela admite.
O reconhecimento que mudou tudo
A falta de consciência racial, inclusive, levou a artista a passar por um dos episódios mais marcantes de sua vida, na época em que morava com a irmã, em Minas Gerais.
— Quando eu disse que era gêmea, as meninas do colégio quiseram saber como meu irmão era. Na hora, fiquei muda. Não consegui falar, com vergonha, e aí comecei a inventar alguém que não existia. “Parece comigo, tem a pele da minha cor, tem os olhos claros e o cabelo jogadinho para trás”. Depois de um tempo, meu irmão decide me visitar e vai me buscar na escola. Dei o endereço errado. Enquanto ia andando até onde ele me esperava, passou um filme na minha cabeça, me senti tão envergonhada, impotente, triste e arrependida.
A atriz decidiu contar essa e outras histórias em um monólogo ao final da peça “Contos negreiros do Brasil”. Antes, reuniu os pais e o irmão e revelou o episódio pela primeira vez, arrancando lágrimas de quem ouvia.
— O racismo tem várias camadas e atravessa as pessoas pretas independentemente do tom de pele que temos. Na minha vida, vi meu irmão sofrer diretamente e, comigo, as pessoas passavam pano porque eu tenho a pele mais clara. Fui crescendo, e também me tornei vítima disso, quando, por exemplo, a escolha das personagens me deixava numa caixinha de subserviência — ela pontua.
Foi nessa peça, aos 43 anos, que a atriz se reconheceu como uma mulher preta. Aline conta:
— A partir daí, tudo mudou. O entendimento de negritude no Brasil é se você tem a pele escura. Se não tem, falam: “Você nem é tão preto assim”. Se eu fosse branca, estaria tendo os privilégios de uma pessoa branca. E entender isso fez com que eu me apropriasse da minha história e dos que vieram antes de mim. Consegui me entender como artista, ser humano, mulher.
Antes desse processo, a atriz recorda que tentava alisar o cabelo e aos 23 anos quase fez uma cirurgia para afinar o nariz. Depois do reconhecimento, impulsionado pelo teatro, o resgate da autoestima se tornou uma realidade que hoje ela vivencia empoderada.
=— A minha autoestima hoje é elevada e está num lugar confortável pra mim. Passei a vida inteira sem me sentir bonita. Fiz recepção de eventos para conciliar o trabalho no teatro e muitas vezes eu perdia a vaga para uma mulher branca do cabelo liso. Até nos flertes, na escola, eu nunca era a preferida. Hoje eu vejo as pessoas me olhando, me desejando, mas precisou vir de dentro para fora — descreve a artista, antes de dizer: — Estou cagando também para a branquitude que me olha torto.
O despertar desse pertencimento, recente para a carioca, no entanto, não é uma realidade para toda a família.
— Meus pais me olham e dizem: “O que a Aline está falando? Ela não é preta”. Mas eu sou sim e a gente vem dessa ancestralidade. Quero que minha mãe, por exemplo, entenda o valor do meu cabelo porque até hoje quando me vê, ela se incomoda. E não é dela, foi algo injetado em sua cabeça — diz a atriz, com a voz embargada, segurando o choro: — Ao construir essa consciência, estou proporcionando isso para a geração que vem depois de mim. E talvez eu consiga trazer isso para os meus pais e irmãos também.
Além de ter abraçado a discussão na vida pessoal, Aline decidiu levá-la para o seu trabalho. Pediu para a direção de arte de “Pantanal”, por exemplo, que Zuleica tivesse na estante livros de autores negros. Nesta matéria, deixou cinco sugestões que estão na sua biblioteca e que, certamente, também fazem parte do acervo da personagem. A enfermeira, inclusive, já apareceu em cena lendo uma dessas obras.
Biblioteca da Zuleica
Insubmissas Lágrimas de mulheres
“Essa obra a Zuleica leu em cena! Foi minha homenagem para uma das maiores escritoras deste país, Conceição Evaristo”.
Água de Barrela
Romance de Eliana Alves Cruz, a narrativa começa com o aniversário de umas das personagens após um século de lutas, perdas, alegrias, tristezas e resiliência.
Tornar-se Negro
De Neusa Santos Souza, a obra discute os efeitos psíquicos do racismo na identidade de pessoas negras.
Pequeno Príncipe Preto
“Originalmente uma peça infantil, Rodrigo França traz a história em formato de conto”.
Confrontar para Confortar
“Livro sobre medos e a necessidade de honrar nossas vivências para firmar nossa caminhada. Eu assino o prefácio da obra, de Jozi Lambert, pois me identifiquei muito com o tema.”
Casamento livre
Como Zuleica, Aline é casada com um homem branco. Há 13 anos, ela e Alex Nader, que também é ator, compartilham uma vida juntos. Os dois nunca chegaram a oficializar a união no civil nem fizeram cerimônia, mas se consideram parceiros de alma: “Nosso encontro é de outras vidas”, classifica.
— Na internet já me chamaram de “palmiteira”, mas isso não me atravessou de maneira que me causasse falta de sono nem nada — conta a artista, que, depois de oito anos com o companheiro, decidiu ter um casamento aberto: — Temos um relacionamento muito livre, leal, justo. É uma parceria em que a gente respeita o espaço, as escolhas um do outro. Não é esse casamento convencional que eu aprendi e no qual cresci acreditando, mas que não fazia nenhum sentido para mim. Me refiro a casamentos monogâmicos e, muitas vezes, hipócritas, em que vejo as pessoas casadas viverem outras histórias, só que por trás. Nossa decisão veio de maneira natural. Entendemos que precisamos respeitar nossos desejos. Respeito casamentos monogâmicos, mas não acredito que funcione para mim. Eu nasci pra voar. Sou uma mulher-pássaro, livre. Quero que minha arte ganhe o mundo. E vai vir comigo quem entender essa liberdade.
Mas, porém, contudo, todavia, entretanto, no entanto, Aline ressalta:
— A regra é fazer tudo sem expor o outro. O casamento livre não quer dizer um oba-oba. Eu e Alex queremos seguir juntos a vida toda. Para isso, precisamos ter essa liberdade. Quero poder fazer o que eu quiser, ainda que eu não faça nada.
Além do marido, Aline vive hoje com a filha do casal, Nina, de 11 anos, e o enteado, Tom, de 19 anos. O jovem hoje faz faculdade de teatro, enquanto a pequena acompanha os passos da mãe na descoberta de sua própria autoestima. Ou ao menos acompanhava, antes de um episódio na escola mudar o cenário:
— Um dia ela foi com um cabelão solto, bem cheio, mas voltou pra casa com ele puxado para baixo em um rabo de cavalo e me disse: “Não quero mais ir de cabelo solto, mãe, os meninos disseram que era de bruxa”. Agora ela está com vergonha do nariz, do cabelo... Estou tendo que fazer todo um trabalho de resgate da autoestima dela, de entender o valor.
Conectada com os Orixás
O reconhecer-se como uma mulher preta deu a Aline ainda um engatinhar no terreno da espiritualidade. Como ainda está aprendendo sobre as religiões de matriz africana, prefere não se intitular como seguidora de uma ou outra, mas pondera que sente não estar sozinha em sua caminhada:
— Tenho respeito e me conecto muito com os Orixás. Mamãe Oxum, Seu Zé Pelintra, que está na nossa casa nos protegendo, Nanã, Oxalá...
E a atriz também manda bem na música. Foi exatamente num momento de conexão com a espiritualidade que compôs sua primeira canção (confira parte da letra nesta matéria). Ela adianta que está em processo de registro e gravando em estúdio:
— Eu recebi essa música. Estava com meu marido na cachoeira e meu pensamento foi se embrenhando naquelas águas. Me veio um refrão e comecei a cantar, sem pensar. Fiquei durante um tempo tentando escrever o resto e não vinha nada. Um dia, conversando com minha amiga, Aline Wirley, ela disse que poderia ser só isso, para eu não ficar com esse compromisso. Relaxei e fui tomar um banho. De repente, veio tudo. Liguei o gravador de voz e comecei a cantar a letra inteira. Ela foi recebida, não foi pensada. Mas não é algo que veio do além. Fala de mim, da minha história, do olhar que tenho pra vida.
Até mesmo Zuleica carrega sua ancestralidade no peito em “Pantanal”. Mãezona, a personagem sempre usa um pingente prateado simbolizando Iemanjá, de quem é filha. Aline pediu que houvesse alguma referência aos Orixás, e a produção logo encontrou a peça.
Um trechinho da música:
Pensamento vagueia
Busco uma conexão
Um afago, uma resposta
Para minha aflição
Quando vem a dor do mundo
Ponho os pés na cachoeira
É ali o meu refúgio
Onde a fé é derradeira
Conto e canto os meus segredos
Para desanuviar
Peço bênção, peço força
Peço amor pra despertar.
[...]
Tudo flui quando olho pra você
E meu coração acalma
É você quem me conduz nas águas
É quem lava minha alma
O adeus a Zuleica
Com a proximidade do fim de um trabalho marcante, Aline abre um sorrisão ao pensar sobre o processo. Quer levar para a vida a parceria com atores como Lucas Leto, Cauê Campos e Gabriel Santana, seus filhos na ficção, Murilo Benício, Dira Paes, Irandhir Santos, Isabel Teixeira, José Loreto, Paula Barbosa... E já falou aos colegas de elenco da família Gonçalves, a “segunda” de Tenório, que não quer que o grupo deles no WhatsApp se extingua após o fim do folhetim, como normalmente acontece. Aline e Cauê, inclusive, já têm um próximo trabalho juntos marcado na agenda.
Depois dessa experiência, o que fica é a vontade ainda maior de “expandir amor”, como recebeu desde a infância, divide Aline. Antes de encerrar a entrevista, ela comemora:
— Minha vida mudou no quanto estou sendo reconhecida pelo meu trabalho. Saber que meus paizinhos vão abrir a revista neste domingo e ver minha carinha... Isso é um presente pra vida!
+ O "AUÊ" é o programa de entretenimento do iG Gente. Com apresentação de Kadu Brandão e comentários da equipe de redação, o programa vai ao ar toda sexta-feira, às 12h, no YouTube, com retransmissão nas redes sociais do portal.