'Além da Ilusão' aborda esquizofrenia corretamente?
iG Gente conversou com especialistas e o Ministério da Saúde para entender representação da doença em Matias, personagem de Antonio Calloni
Matias, personagem de Antonio Calloni em "Além da Ilusão", desenvolveu "demência precoce" após a morte da filha, Elisa (Larissa Manoela). O ex-juiz, na realidade, tem esquizofrenia, doença que atinge dois milhões de brasileiros. Em 2021, o país realizou mais de 177 milhões de atendimentos em pessoas com diagnóstico de esquizofrenia, segundo o Ministério da Saúde. Será que a trama da Globo aborda a doença de maneira correta? O iG Gente ouviu especialistas para entender a perspectiva da trama de Alessandra Poggi.
A esquizofrenia é caracterizada por sintomas de desorganização mental e pode envolver alucinações, paranoia, perda de memória, irritabilidade, isolamento social e abandono de atividades rotineiras. Em nota para o iG Gente, o Ministério da Saúde afirma que pouco mais de dois milhões de brasileiros apresentam esquizofrenia, mas que nem todos têm acesso ao tratamento qualificado.
Segundo a psicóloga Maria Rafart, a doença se inicia com a apatia. “A doença vai progredindo para um progressivo abandono de atividades rotineiras e isolamento social. Os pensamentos podem progredir para a incoerência, e pode haver respostas emocionais cada vez mais infantilizadas e incoerência de pensamento”, afirma.
Maria explica que as causas da esquizofrenia não foram totalmente esclarecidas. No caso da novela, o que é apresentado é que Matias teve a manifestação do distúrbio mental após a morte da filha mais velha. Para a psiquiatra Lívia Castelo Branco, o distúrbio já existia, mas o trauma pode ter auxiliado a desencadear a doença. “Na maioria das vezes, a esquizofrenia começa devagarinho. Tem uma mudança de comportamento e algo que aparece, específico, o indivíduo identifica aquilo como a justificativa de todo o quadro dele. Geralmente não tem um fator desencadeante específico”, comenta.
A psiquiatra conta que há diversos fatores que levam a condição a aparecer. “Primeiro há fatores genéticos, famílias com transtornos psicóticos como esquizofrenia e transtorno bipolar têm um risco maior. Há também trauma, condições na gravidez, no parto, também podem influenciar no desenvolvimento de quadros psicóticos na vida adulta”, diz. “Há também o fator do uso de substâncias. Principalmente de drogas, que pode estar associado também ao desencadeamento de um quadro numa pessoa que já tem vulnerabilidade até essa doença”, afirma Lívia.
“A pessoa nasce com um potencial para o desenvolvimento da esquizofrenia. E podemos ter um desencadeante ambiental, sim. Um trauma ou uma situação de grande estresse podem causar um quadro de esquizofrenia, mas em alguém com predisposição para tal”, aponta Maria Rafart.
Lisiane Facchineto, psicanalista, professora da FMU e pesquisadora da USP, diz que Matias está desorganizado psiquicamente e que há a chance do personagem retornar ao ponto de sanidade. “Ele desorganiza, mas isso não quer dizer que ele não possa se reorganizar. Vai depender das reservas cívicas para se reorganizar, tendo ajuda profissional, tendo ajuda de um clínico, de um analista, de um psicanalista, de um psicoterapeuta. Ele precisa dessa ajuda para sair do sintoma do surto, que é esse afastamento do mundo externo”, analisa.
Na novela, Matias tem a ajuda de médicos e do amigo Leônidas, que o auxilia com uma espécie de terapia ocupacional, estimulando o personagem a retomar atividades que fazia antes de desenvolver a doença. “A terapia ocupacional é fundamental na recuperação dos pacientes com esquizofrenia e também com outros transtornos mentais. Ela ajuda a melhorar a concentração e habilidades motoras, os movimentos das mãos, além de ajudar a instrumentalizar o paciente”, afirma Lívia Castelo Branco.
O Ministério da Saúde classifica a terapia ocupacional como uma abordagem moderna para transtornos mentais como a esquizofrenia. “Ela envolve equipes multiprofissionais, com psicólogos e psiquiatras, mas também com o terapeuta ocupacional, que ajuda na reabilitação da pessoa, sendo bastante positivo no processo de tratamento de pessoas com transtornos mentais graves”, afirma a pasta.
Novela abre debate para doença, mas pode reforçar preconceito
Tratar de um assunto sério como a esquizofrenia em novelas como "Além da Ilusão" pode abrir debates na sociedade e também mostrar como os transtornos mentais eram tratados nos anos 40 e 50. Na novela, é mostrado que Matias sofre por não ter tratamento adequado e pela família não entender a condição dele.
Para Lisiane, tratar do assunto em novelas é importante para desmistificar que não se trata apenas de uma doença e que apesar do assunto complexo, é possível entender a condição. “É bom, para que a gente possa discutir as diferenças. As diferentes formas de viver no mundo. E que é possível tratar as nossas formas de lidar com o mundo. De entender também que não é porque ele está desorganizado psicologicamente que estará sempre em crise psicótica”, afirma.
Lívia Castelo Branco diz que a novela pode ajudar a mudar a cultura de alguma forma. “Falar de uma doença que é tão prevalente como essa é muito importante justamente para entender como funciona e também para o público prestar atenção, seja em pessoas da sua família, ou até encontrar pessoas que tem os sintomas parecidos e prestar ajuda para essas pessoas”, diz.
Mas a psiquiatra afirma que tratar do assunto utilizando uma história de violência para justificar a esquizofrenia de Matias pode reforçar o estigma de que pacientes com a doença são violentos. “Ele matou a filha e disse que foi outra pessoa, então, assim, quando você envolve essa história de agressividade e de assassinato isso pode, sim, repercutir um estigma que não é verdadeiro. E ele pode gerar mais sofrimento para os pacientes esquizofrênicos”, afirma.
Dos preconceitos que podem ser gerados após o diagnóstico de esquizofrenia, Lívia cita algumas formas de psicofobia: “Primeiro a rejeição social, perder os amigos e ter dificuldade de conseguir emprego é muito comum. Isso ocorre por conta de algumas dificuldades que pode ter de organização, de rotina, de cumprir horários. Além disso, há o preconceito e medo de agressividade por parte de pessoas do ciclo social”.
Apesar do risco de reforçar o estigma, Maria Rafart afirma que é necessário dar espaço na mídia para todas as doenças mentais. “Elas merecem ter espaço, a fim de auxiliar a derrotar o gigantesco preconceito que ainda se abate sobre elas. Expressões capacitistas como, 'você está louco', ou 'essa mulher é maluca', devem ser riscadas de nosso vocabulário. Além disso, as tramas das novelas ajudam na empatia do público”, afirma.
Demência precoce ou esquizofrenia?
Logo após a cena em que Matias surta pela morte da filha, ele é diagnosticado com demência precoce. Segundo o Ministério da Saúde, esse nome não é mais utilizado, já que a esquizofrenia e a demência são diferentes. “Elas têm sintomas e apresentação distintas”, afirma a pasta. Segundo Maria Rafart, a medicina evoluiu e mudou a forma em que se explica a doença. “Hoje se fala em demência caso haja uma lesão cerebral, e em esquizofrenia quando o distúrbio é na funcionalidade”, diz.
Matias, personagem de Antônio Calloni, aos poucos perde o traquejo social e se isola na casa da família, em Campos, no Rio de Janeiro. Segundo Lívia Castelo Branco, a doença evolui após o diagnóstico. “Tem vários tipos de diagnóstico, há o paciente que teve uma crise e ficou bem mantendo o uso da medicação, que mantém a vida normal. A doença tende a ser progressiva com um tratamento irregular, mas ela pode com o tratamento regular a tendência é que o paciente fique bem”, diz.
Nas cenas, Matias também é tratado de forma infantilizada por Leônico e outros personagens do núcleo dele. Para a psiquiatra, se a pessoa é adulta e tem um transtorno mental, deve ser tratada como é: adulta. “Ele pode ter o comportamento desorganizado, fazer coisas sem sentido, então a gente tem que ser muito direto na orientação com essa pessoa. Não tratar como criança, porque se infantilizar, pode diminuir a autonomia da pessoa”, afirma. “Se ele está ali num quadro delirante, bater de frente com aquele delírio, não vai adiantar, só vai deixar a pessoa mais irritada”, explica.
Tratamentos na novela
Em "Além da Ilusão", Matias aparece apenas em cenas em que surta ou brinca com o amigo Leônidas. Apesar de falar da esquizofrenia na novela, a obra não cita os tratamentos para a doença nos anos 40. Das poucas menções aos tratamentos, Heloísa, personagem de Paloma Duarte, ameaça Matias de chamar médicos e colocá-lo em uma camisa de força caso ele não pare com os surtos.
Segundo o Ministério da Saúde, da época da novela para hoje, a medicina evoluiu ao ponto de ter mais de 10 remédios antipsicóticos para tratamento da esquizofrenia, disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS). “Elas causam menos efeito colaterais e são úteis em casos que não eram tratáveis com os antipsicóticos de primeira geração, o que promoveu a evolução do manejo clínico. Antes, o único recurso era um antipsicótico e a convulsoterapia, surgida em 1934”, afirma a pasta.
Lívia explica que na época havia poucas medicações para tratar da doença. “Basicamente o tratamento era feito com o eletrochoque da tecnologia da época. Então você tinha aparelhos com cargas elétricas altíssimas e esse tratamento não tinha só benefícios. Se o paciente ficasse agitado era feito o eletrochoque, como também ele era sem anestesia, então tinha muitas complicações”, explica.
Ela comenta que atualmente há uma variedade de antipsicóticos. “Na maioria dos pacientes responde bem com medicação que pode ser tanto comprimido quanto xarope, quanto injeções, que ficam no corpo por um mês ou três meses”, diz. Lívia também conta que o tratamento com eletricidade ainda é utilizado, mas em casos específicos e com acompanhamento adequado.
“Quando a gente utiliza a eletroconvulsoterapia, ela é acompanhada de avaliação cardiológica, avaliação pré-anestésica, com relaxamento muscular, então diminui muito o risco de qualquer tipo de complicação, a carga elétrica é muito menor do que era então tem menos efeitos colaterais. Com acompanhamento, ele tem resultados muito bons aliados à fisioterapia”, afirma.
“Os doentes, até o século XIX, eram considerados loucos, e colocados em isolamento em sanatórios. Durante a década de 1940, um dos primeiros tratamentos eficazes consistia no eletrochoque. Só mais tarde, nos anos 1950, surgiram os primeiros medicamentos chamados antipsicóticos, aqueles que se denominaram de primeira geração. Até hoje, o principal pilar do tratamento da esquizofrenia é o remédio antipsicótico. De uso contínuo, abranda sintomas como delírios e alucinações, e melhora as crises em geral”, completa Maria Rafart.
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