O ano era 2014 quando, em meio à extinta Virada Cultural de São Paulo , passei pelo palco Rio Branco, que naquele ano se dedicava à releituras de discos clássicos. Entre plumas e bananas, numa estética bem carnavalesca, Alice Caymmi surge no palco para apresentar o disco Eu Não Tenho Onde Morar (1960), de seu avô Caymmi.
A escolha já era inusitada, já que se trata de um álbum que totaliza 30 minutos, mas os arranjos pendendo para o rock fizeram da performance uma imensidão de força e personalidade. Algumas faixas ficaram de fora enquanto outras da trajetória de Caymmi tomaram corpo, num apanhado que apresentava a obra de vida do artista num tom não contemporâneo, mas um tom de Alice.
Ainda que num lugar de representante de uma das mais importantes famílias da música brasileira, ela já mostrava ali que tinha um estilo muito próprio e desafiador. Que não cabia em caixa nenhuma de mera herdeira. A prova disso veio no mesmo ano.
Rainha dos Raios ganhou o mundo naquele 2014 e chegou para arrebatar a cena musical. Quem estava ali não era mais a Alice da dinastia Caymmi. Era sim uma artista completa, emancipada, dona de sua narrativa e muito, mas muito para frente. O disco era seu segundo gravado em estúdio, mas talvez o primeiro de uma jornada que não se apaziguou até hoje.
“O que a gente tá fazendo hoje é comemorar 10 anos da independência do país Alice Caymmi” , diz. “Esse disco é tão ‘avançadão’ que visitar ele é visitar essa coisa minha futurista, de ter um olho lá na frente e outro no agora. Sou muito interessada no movimento da coisa, jogando pra frente sem parcimônia, sem julgamento”.
Se o arrebate me pegou 10 anos atrás, o que acontece hoje é uma catarse. Este 2024 fica marcado por Rainha dos raios: A fúria , a segunda parte da trilogia da destruição, como descreve a própria Alice em carta aberta sobre este novo capítulo de sua história. Uma retomada, sim, mas que concretiza a potência de uma artista que não tem limites. Não se limita por sua genética, nem pelo momento mercadológico da cena musical.
A versão deluxe — e em Fúria — celebra uma década desse álbum ainda tão atual, que não só não perdeu o vigor, mas se reinventou. “Não precisava de renovação, porque ele é super atual, mas a gente trouxe coisas que a gente tem vontade de cantar agora, como “Amor”, que fez sucesso nos anos 80 na Espanha. Mas a gente joga pra frente, joga luz sobre a canção. E o Rainha é isso, eu e o Straus entendendo o tempo de agora independente de quão pra trás a gente olhe. Boas canções atravessam o tempo”.
Olha para trás, mas também para frente, o que se prova também pela inclusão da ótima canção do Calcinha Preta , “Agora Estou Sofrendo”, numa roupagem de rock melódico, épico, mas sem perder a sofrência.
Para o show de estreia, o lugar escolhido foi o Teatro Oficina, templo das artes cênicas onde, aos 19 anos, Alice teve uma grande revelação depois de assistir o espetáculo “Bacantes” , de Zé Celso. “Nunca mais voltei a ser o mesmo corpo, a mesma existência. Eu era, a partir dali, uma artista: uma bacante. E assim serei até o dia da minha morte”.
O show é um desbunde. Algo que certamente Zé Celso aplaudiria de pé. Forte, raivoso, sem dó, ele dilacera cada faixa numa evolução constante. Despida de todas as amarras, Alice entrega a alma naqueles icônicos metros de tablado. Ela está exposta até mesmo no figurino, que se transmuta e vai da palhaça às entranhas, culminando no corpo nu.
Sobre o momento da música, ela é enfática: “Tá todo mundo doente. Só que eu sou maluca o suficiente para aparecer doente. E botar minha cara ali. E fazer as coisas na base do ódio. Só porque não queriam que eu estivesse ali. Porque eu sou assim”.
Alice pode até voltar seu olhar para trás, mas sua mente e seu corpo estarão sempre anos luz à frente de seu tempo. E que sorte viver nele para ver tudo isso bem de perto.