Domingo de eleições acordo em êxtase. Acreditando que a camisa da vida é um traje que me veste bem. Exercer nosso maior dever cívico me comove desde antes dos 16. Quando eu tinha 15 anos, só queria ter 16. Não quis festa de debutante. Quis acordar cedo pra tirar o título. E um pagode com churrasco depois das 12h (porque era o número do Brizola). Caricata, eu sei, demagogo, talvez, mas na minha casa os símbolos políticos eram ao extremo levados a sério. E votar era ser finalmente cidadã. Troquei um vestido por um título.
Voto no Clube Militar (curiosa contradição). Ao sair da urna fui esperar a apuração no Bar Madrid, onde me sinto perto dos símbolos da minha história, dos ícones da minha cidade. Só que dessa vez, enquanto torcia para os meus candidatos ao Rio de Janeiro, com o papelzinho de comprovante de voto nas mãos (que guardo como se fossem diplomas), estava mais preocupada com outra cidade.
Amo São Paulo. Odeio São Paulo. São cidades incompatíveis, dizem. São cidades complementares, digo. A encruzilhada do Brasil. Há quem me condene pelas piadas que faço (são mesmo muitas, perdão, sou o mais pífio clichê da devoção à malandragem carioca), mas o fato é que eu não vivo sem São Paulo. Não fico mais de 1 mês sem trocar os sinais por faróis, quebra-molas por lombadas, gatas por minas, caras por manos. E ainda, o samba pelo… (pasmem) samba! São Paulo faz samba bonito demais. São Paulo, a despeito de túmulo , foi quem sustentou o samba, dito “de raiz”, especialmente nos anos 90 e na década seguinte. Mas isso é assunto pra outra crônica.
Quase todas as minhas melhores pessoas, hoje, moram do lado de lá do Graal de Resende. Mas não só. É que apesar do laranja no fundo dos arranha-céus ser agora apenas o prenúncio do fim do mundo, me comovo com coisas – que deveriam ser – básicas como amigos conseguindo trabalhar com cultura. O que pode acabar, dependendo do resultado desse sufrágio sôfrego. Mas por ora é abrasador respirar (quando possível) arte e literatura pelas avenidas. Fora que o paulistano é capaz de parodiar uma esquina do Rio, por vezes, melhor que o próprio Rio.
Cheguei na Tijuca, preocupada com o Bixiga; Geraldo Filme, o silêncio de um minuto . Sem sequer supor que a notícia que chegaria quando amanhecesse seria a da falta de luz nos bairros que o cercam, por mais um dos incontáveis equívocos do atual prefeito. Pensei no pessoal do Samba da Vela, que conheceu todo o cancioneiro popular do gênero ouvindo K7s nos aparelhos de rádio dos carros. A eletricidade ainda não havia chegado a São Mateus e Santo Amaro, na época de suas infâncias; q uando a vela apagar/ e o samba terminar/ saudade não me deixa ir embora/ o peito vazio implora/ que uma luz me ilumine agora (Magnu Sousa/ Maurílio De Oliveira/Edvaldo Galdino – A Comunidade Chora )
São Paulo tomava conta de minha naturalidade, Outro amor não sei se o coração suportará (Waldir Wanderlei Da Fonseca) – e não é que minha terra de palmeiras cantasse como o sabiá, visto que um miliciano sempre pode aparecer do mais absoluto nada e transformar qualquer candidato minimamente elegível no Rubinho Barrichello da vez – mas é que a cidade ao lado é a única que tem a oportunidade de eleger um governo realmente de esquerda, e entretanto, caso não o faça, vai cair num retrocesso mórbido tendo por mandatário o privatizador da escuridão.
Aí chegou o Simas. Nessa hora eu pensei: agora eu volto pro Rio, não é possível! Afinal, o Simas é a própria “ Alma Encantadora das Ruas” cariocas (por sinal, fez uma belíssima fala na abertura da FLIP desse ano, que homenageou João do Rio, de cuja bibliografia faz parte o título acima). Atravessou a rua pra me contar que Anitta, sua parceira no samba-enredo vencedor da Unidos da Tijuca para 2025, fez questão de dizer pra ele que, apesar de acharem que ela é funkeira desde sempre, sua infância e juventude foram marcadas, segundo suas palavras, por domingos de feijoada ao som de Beth Carvalho . E completou: O imaginário de samba da Anitta, assim como de grande parte da população brasileira, foi traçado pelo repertório da Madrinha do Samba.
Foi quando, por alguns minutos, larguei a Barra Funda, imaginando que faixa do repertório de minha mãe deveria estar na voz de uma das mulheres mais poderosas do Brasil, atualmente. Funkeira de Honório Gurgel, dona da porra toda, e agora responsável pelo refrão da Unidos da Tijuca no desfile do próximo ano (puro suco de Rio de Janeiro). Acho que Beth Carvalho e Anitta são um excelente exemplo de CEOs que deixariam um Tallis Gomes na rua da amargura. Agora eu fico aqui, agora desço até o chão sem sair desse baile, dessa quadra, pensei. Mas não. Lá estava eu com a cabeça na Vai-Vai, na Iracema de Adoniran, nas quebradas do Sapiência, na Faria Lima (responsável direta pelo “odeio São Paulo” supracitado), nas consequências de Ricardo Nunes se reeleger. Ou seja, a realidade do meu domingo de votação na Guanabara foi a de que nem o Simas, a Anitta e minha mãe juntos na mesma mesa de boteco da zona norte, me tiraram o pensamento da terra da garoa (agora sol do apocalipse).
Decidimos pela emenda; pegamos o Santa Bárbara rumo à praça São Salvador. Nos sentamos, a cariocada, no chafariz de um dos baluartes mais esquerdistas da zona sul do RJ pensando em SP até que saísse o resultado. Saiu! Boulos no segundo turno!
Fui pra Gávea aliviada pela Praça Roosevelt. Arrebatada pela beleza que é a alegria compartilhada nas praças. Dessa vez por dois municípios; o de lá segue periclitante, mas com esperança, esta paciência inquieta. “Desistir porque não vamos ganhar é desistir de sermos humanos” (Benjamin Moser), não nos decepcionem, caros complementares!
A política municipal é aquela que tem por obrigação assistir o cidadão nas necessidades basais do cotidiano. Posto de saúde, escola pública, transporte; o osso urbano. Não aquela sistêmica, voltada para o macro, que desvia do sujeito, da qual a gente só sabe por agenda e se houver cobertura midiática. Ou aquela que transfere responsabilidades de gestão pública a imperialistas que comandam outro tipo de quebrada. É a política que encosta no morador. Com as mãos estendidas. Ou deveria.
Um país é feito da alma de cada cidade. O que vivi no domingo foi uma celebração em que uma cidade toca na outra. De mãos dadas. A gente precisa lembrar de votar pensando nas mãos da cidade próxima. Como se votássemos nela também. Como uma mulher lisonjeada de sua semelhante (seja ela incompatível ou complementar). Porque à revelia do discurso abominável do coach cujo treinamento não funciona nem para si mesmo, acho que não à toa cidades são substantivo feminino no plural.
A palavra samba vem de umbigada (designação africana para dança de roda). As cidades, como o samba, carecem de uma relação umbilical. Rio e Sampa numa só barriga podem parir um Brasil vigoroso. Dia 27 de outubro, vou pra Praça Clóvis, levo meu título, lhes dou as mãos e empresto minha camisa.