Atriz e cantora. Essa era a primeira resposta que me vinha à mente sempre que me perguntavam, quando criança, o que eu queria ser quando crescesse. Mas, ao fim do ensino médio, quando chegou a hora de decidir qual seria meu ganha-pão, fui confrontada com uma dura realidade: não havia pessoas como eu nessas profissões.
Neta de japoneses nascida no Brasil no início dos anos 90, cresci tentando corresponder à expectativa que me encarava na televisão, nas capas de revista, e até mesmo dentro de casa. Uma das lembranças mais vivas que tenho da infância é de aproveitar qualquer oportunidade para esfregar vigorosamente os olhos. Segundo meu pai, a prática me ajudaria a desenvolver as “dobrinhas” das pálpebras, o que me deixaria mais bonita — ou mais “ocidental”, embora ele nunca o tenha dito com todas as letras. Já na adolescência, passei a descolorir os cabelos na esperança de ser tratada como branca, mas acabava vista apenas como a “japa loira”.
“E é assim que a representatividade vai apontando quais roupas devemos usar, quais traços a gente vai querer esconder, quais lugares devemos ocupar”, explica a psicóloga Karina Kikuti , especialista em relações de gênero, raça e etnia, com prática clínica e pesquisa voltada para pessoas amarelas — como são conhecidos os leste-asiáticos e seus descendentes. “ É importante entender a auto-imagem como um processo formado pelas relações que a pessoa tem com o mundo e com ela mesma. Essas relações vão estabelecendo a forma como a pessoa se vê nos diversos âmbitos da vida dela: pessoal, físico, emocional. E a mídia vai ter uma influência direta nessa construção”, continua Karina. “Para pessoas amarelas, essa representatividade fica estereotipada ou inexistente”.
De fato: para meninas como eu, as únicas referências eram a então ex-BBB Sabrina Sato , que tinha sua imagem hipersexualizada para servir ao olhar da audiência masculina do programa Pânico! na TV, e a atriz Danni Suzuki , cujos papéis se resumiam a caricaturas do que produtores audiovisuais brasileiros acreditavam ser os japoneses e seus descendentes — a única etnia amarela de que se falava à época.
Minha única experiência como atriz não foi diferente. Após começar e largar os cursos de jornalismo e publicidade, me resignei a prestar medicina e engenharia, profissões em que ser amarela poderia ser considerado uma vantagem. Enquanto fazia cursinho, acabei conseguindo um papel em uma série chamada “ Julie e os Fantasmas ”, veiculada na Band, na Nickelodeon e na Netflix.
Como já era de se esperar, minha personagem, Shizuko, era a nerd da sala, dedicando a vida a estudar e manter as notas altas. Até aí, tudo bem. De fato existe uma pressão cultural por desempenho acadêmico em famílias leste-asiáticas. Mas o problema maior começava ao desligar das câmeras.
Nos bastidores, enquanto os demais atores eram chamados pelos seus nomes próprios, eu seguia sendo tratada como “Shizuko”. Como se eu só pudesse existir enquanto personagem ficcional criada pelos roteiristas daquela série infanto-juvenil — e pelo imaginário brasileiro do que significava ser descendente de japoneses nesse país. Para piorar, o cachê que ganhei por seis meses de gravação não era suficiente para me sustentar nem por um mês. E foi assim que enterrei prematuramente a carreira de atriz com que tanto havia sonhado.
Atualmente, a popularidade de produções musicais e audiovisuais sul-coreanas inaugurou um novo capítulo na representatividade de pessoas amarelas na mídia. Antes distantes do padrão de beleza ocidental, hoje pessoas amarelas (especialmente os homens) passaram a ser hiperdesejados por fãs de K-pop e K-drama — cujo sonho, muitas vezes, envolve ter um bebê “coreaninho”.
Prova disso é a nova novela das sete, que acaba de estrear na Globo. “ Volta por Cima ” conta com uma personagem aficionada em K-drama que fica mais perto de realizar seu sonho quando se depara com um ator coreano, interpretado por Allan Jeon . O que muita gente não sabe é que, inicialmente, esse seria o único personagem amarelo no elenco.
Tudo mudou em junho deste ano, quando a atriz Bruna Aiiso apresentou a palestra “Invisibilidade e Protagonismo – Revolução Amarela no Audiovisual”, contratada pela Globo para o chamado “dia zero” da equipe da trama. “A oportunidade surgiu a partir das pessoas do departamento de diversidade que já acompanhavam meu trabalho pelas redes sociais e também por uma das diretoras da novela que é uma mulher amarela, a Jully Irie ”, conta ela a Bravo! .
Durante a pandemia, a artista criou em seu perfil do Instagram a série de lives “Brasileiros”, em que entrevistava atores de ascendência leste-asiática sobre suas experiências no mercado audiovisual brasileiro. Foi numa dessas que Danni Suzuki revelou que a protagonista de “Sol Nascente”, novela de 2016 que buscava homenagear a colônia japonesa no Brasil, tinha sido escrita por Walther Negrão para ela.
Então com 43 anos, Dani foi posteriormente considerada velha demais, tendo sido substituída por Giovanna Antonelli , que tinha 44. A idade também foi o motivo apresentado à época para trocarem o já escalado ator japonês Ken Kaneko por Luís Melo .
A escolha de dois atores brancos para liderar o núcleo nipo-brasileiro da narrativa gerou polêmica, dando início a uma união histórica de artistas amarelos por representatividade na televisão brasileira. Desde então, Bruna tem sido uma das vozes mais ativas nessa luta, tanto nas redes sociais quanto dentro da própria indústria — vide a palestra que mudou o curso de “Volta por Cima”.
“Hoje, é com grande satisfação que temos cinco talentos amarelos de diferentes ascendências integrados ao time fixo, um marco significativo para a classe artística amarela no Brasil”, compartilhou Bruna em sua página pessoal. E o mais revolucionário: esses atores compõem não apenas um, mas três núcleos diferentes da novela, algo inédito na televisão brasileira.
Uma dessas atrizes é Jacqueline Sato , que, oito anos após integrar o elenco da polêmica “Sol Nascente”, acaba de estrear como produtora, roteirista e apresentadora de “ Mulheres Asiáticas ”, série exibida no canal E! Entertainment e disponível na plataforma de streaming Universal+.
Por meio de um bate-papo entre mulheres nipo-brasileiras de destaque em suas áreas de atuação, o docu-talk-reality toca em temas como ancestralidade e racismo, mostrando que as experiências pessoais também são coletivas. “Eu e muitas mulheres de ascendência asiática tivemos fases de não gostar das nossas características físicas ligadas à nossa racialidade. E isso é algo muito triste”, diz Jacqueline a Bravo!.
A ideia é dedicar cada temporada a uma etnia asiática — nesta primeira, a atriz Ana Hikari e a estilista Tete Oshima foram algumas das convidadas. Mas a representatividade não se restringe a quem aparece em frente às câmeras. A equipe de lideranças criativas de “Mulheres Asiáticas” é composta exclusivamente por mulheres amarelas, como as diretoras Aya Matsusaki e Denise Takeuchi . “O objetivo é que a pluralidade e representatividade dessas histórias estivessem presentes na frente e atrás das câmeras, do começo ao fim.”
É o que Bruna Aiiso defende também. Para ela, a presença de uma diretora amarela na equipe de “Volta por Cima” foi de extrema importância para que a mudança acontecesse. “Diretores, roteiristas, produtores de elenco que compartilham experiências e identidades variadas trazem narrativas autênticas e enriquecedoras também”, defende. “E essa inclusão não apenas amplia a gama de histórias contadas, mas também permite que diferentes vozes sejam ouvidas, contribuindo para uma indústria mais justa e mais equilibrada”, continua Bruna. “ Ao promover a representatividade, nós podemos desafiar, por exemplo, estereótipos, criar empatia, e conectar o público de maneira mais significativa, garantindo que todos se vejam refletidos nas telas ”.
“É por isso que a representatividade feita de forma responsável é tão significativa”, explica a psicóloga Karina Kikuti. “Porque ela vai comunicando que esses marcadores limitantes são coisas para ficar no passado”.
Para além do cenário brasileiro, a vitória histórica da série épica “ Xógum: A Gloriosa Saga do Japão ” no Emmy também inaugura um novo capítulo da representatividade amarela no audiovisual internacional. Além da produção ser a primeira em língua não-inglesa a vencer a categoria de melhor série de drama, Anna Sawai foi a primeira mulher de ascendência asiática a vencer a principal categoria de atuação da maior premiação da televisão.
Tenho certeza que a mini Jéssica se sentiria mais encorajada a perseguir seus sonhos caso fosse criança nos dias de hoje.