Multiplicando percepções com Lygia Clark
Laís Franklin
Multiplicando percepções com Lygia Clark

“Só sei que nada sei.” Cada vez que me deparo com alguma coisa que desconheço, essa é a primeira coisa que me vem em mente. E isso me provoca um deslumbramento instantâneo, que se sintoniza com a minha curiosidade. Foram essas as sensações que levei comigo na mostra da artista mineira Lygia Clark , na Pinacoteca de São Paulo, curada com maestria por Ana Maria Maia e Pollyana Quintella .

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<span class="hidden">–</span> Levi Fanan / Pinacoteca do Estado de São Paulo/reprodução
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Seguindo meu instinto de primeiro deixar o corpo sentir, não pesquisei nada sobre o trabalho de Lygia antes da visita. A única informação que eu tinha era que se tratava de uma artista do movimento neoconcretista, do qual sabia apenas que fora influenciado por Ferreira Gullar . Aqui já se pode perceber que, apesar de amante da arte , meu conhecimento é condicionado pelas informações que recebi do ambiente onde cresci, que se limitavam aos grandes nomes do Renascimento, do Impressionismo e do Surrealismo.

Todo o meu processo foi uma tentativa de

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reunir a arte e a vida.

Lygia Clark
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Projeto para um planeta e os sete sentidos

Visitei a mostra acompanhada da minha filha de dois anos e meio, e de uma cara amiga, que foi quem me convidou, justamente com a ideia de que eu, como leiga, escrevesse sobre as minhas impressões. Ao chegar, minha primeira sensação foi de desconcerto: o que aquelas obras estavam tentando me comunicar? Qual parte de mim elas queriam tocar? Segui o fluxo da minha filha e me deixei guiar por ela, pelo seu olhar.

Passei a observar onde ela detinha a sua atenção, e aos poucos fui sentindo aquela arte sem limites, sem regra definível, que penetrava em mim, provocando uma fusão entre os meus sentidos, os das demais pessoas e o ambiente. Na sala onde estava a obra Bichos , primeiro me atentei a como minha filha interagia com a instalação, deixando-se guiar pelos seus impulsos, pelo que os bichos lhe comunicavam, e a como ela respondia a eles. Ao manipulá-los, pude sentir uma total unicidade com a obra, um adentrar, uma simbiose. Mal sabia que esse era apenas o início.

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Área em que é possível interagir com as peças de Lygia Levi Fanan / Pinacoteca do Estado de São Paulo/reprodução

A mostra, que comemora o centenário de Lygia Clark, está formada por mais de 150 obras, distribuídas em sete salas da Pinacoteca Luz até 4 de agosto, e reflete mais de trinta anos da carreira da artista. A obra Projeto para um planeta , da série Bichos , é a que dá nome à exposição, onde também se pode visitar a instalação realizada para a Bienal de Veneza de 1968, recriada em grande escala especialmente para a Pinacoteca.

Também podemos contemplar as pinturas do início da sua carreira, os seus projetos arquitetônicos e fotografias das imersões da Estruturação do Self , método terapêutico criado por ela. É um percurso que segue a cronologia do desenvolvimento de suas pesquisas, passando pelas Obras Moles e os Trepantes , nos quais se pode perceber os desdobramentos relacionados com o campo tridimensional.

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Em seguida vem a obra Caminhando , representando o momento em que a artista convida as pessoas à coautoria a partir do envolvimento delas com os objetos artísticos, até chegar ao que ela denominou “linha orgânica”, na qual os limites entre a vida e arte são questionados — como em Quebra da moldura e Descoberta da linha orgânica . O passo seguinte foi a experimentação sensorial do corpo, desencadeando-se na realização dos Objetos relacionais , que foram utilizados na Estruturação do Self , projeto ao qual ela dedicou os seus últimos anos de vida.

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Foto da exposição “Lygia Clark: Projeto para um Planeta” em cartaz na Pinacoteca de São Paulo Levi Fanan / Pinacoteca do Estado de São Paulo/reprodução

A mostra Lygia Clark: Projeto para um planeta me fez pensar na Gestalt, que como abordagem psicológica se concentra na percepção e na experiência subjetiva, enfatizando a ideia de que o todo é maior do que a soma das partes. Me fez pensar também em Eric Kandel , que integra a neurociência com a arte para aprofundar nossa compreensão de como ela impacta o cérebro humano, e vice-versa, demonstrando que o fazer artístico é tanto uma ferramenta para a exploração científica quanto uma expressão profunda da experiência humana, moldada pelas complexidades do cérebro. Porém, o que mais me chamou a atenção foi o fato de, com o seu trabalho, Lygia Clark conseguir apontar, anos antes da ciência, a existência de sete sentidos, e não apenas cinco.

Estudos recentes da neurocientista espanhola Nazareth Castellanos comprovaram o que já se desconfiava: possuímos sete sentidos. Segundo ela, os mais importantes são os menos conhecidos — propriocepção e vestibular. O sentido vestibular é responsável pelo equilíbrio e pela percepção do nosso movimento. Localizado no ouvido interno, é aquele que nos ajuda a detectar mudanças na posição do nosso corpo. Essencial para andar, correr e para a nossa postura, graças a ele podemos manter o equilíbrio, coordenar movimentos e nos orientar espacialmente. O sentido de propriocepção, que envolve receptores espalhados pelos músculos, tendões e articulações, permite que o nosso corpo perceba sua posição e o seu movimento no espaço sem necessidade de olhar.

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<span class="hidden">–</span> Levi Fanan / Pinacoteca do Estado de São Paulo/reprodução

Com os experimentos e objetos que Lygia Clark propôs e criou em vida, é possível ativar e conectar os sentidos entre eles. Como consequência, potencializa-se o momento presente, o que estimula uma conexão profunda do eu consigo. Em contato com as obras da artista mineira, os cinco sentidos mais conhecidos — olfato, paladar, tato, visão e audição — percebem estímulos externos. Os dois desconhecidos pela maioria de nós, que também entram na equação, percebem estímulos internos.

Os estudos de Lygia Clark foram geniais a partir de múltiplos pontos de vista, e não me surpreendeu que ele tenha servido de base para a criação de uma metodologia ao tratamento de pessoas com sofrimentos psiquiátricos — como esquizofrenia e psicose — pelo artista e médico Lula Wanderley , que trabalhou juntamente com Dra. Nise da Silveira e Lygia Clark, no que hoje recebe o nome de CAPS EAT – Espaço Aberto ao Tempo, localizado no Rio de Janeiro.

[…] uma das coisas mais bonitas da arte

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é que tem muitas dimensões.

Lula Wanderley

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<span class="hidden">–</span> Levi Fanan / Pinacoteca do Estado de São Paulo/reprodução

Dr. Lula foi capaz de integrar a sua experiência, primeiramente como cliente da reestruturação do self de Lygia, ao seu trabalho com Nise da Silveira. Ele também correlacionou a ampla literatura deixada por Lygia aos estudos do crítico de arte Mario Pedrosa. Até hoje, Wanderley utiliza os objetos criados pela artista, que incitam a conexão entre a pessoa e a arte. Após anos aplicando sua metodologia, ele afirma que, graças à “utilização dos objetos criados por Lygia Clark, percebeu o nascimento de uma dicotomia, uma nova dialética entre o corpo e o objeto […]. Não existia nem corpo, nem objeto, não existia nem dentro nem fora, a maneira que o corpo organizava a sua presença no mundo, se apagava ali […]. Tudo era um movimento único […]. Era o tempo-arte de cada pessoa”.

Quem conhece um pouco do meu trabalho sabe que criei uma teoria nomeada Multipercepção Cultural , na qual defendo a multiplicação das informações, que recebemos do meio onde vivemos, como forma de ampliar a nossa percepção do mundo interior e exterior. Para isso, é fundamental a conexão dos nossos sentidos, e como instrumento para alcançá-la proponho a arte.

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<span class="hidden">–</span> Levi Fanan / Pinacoteca do Estado de São Paulo/reprodução

Conhecer o legado de Lygia Clark e de Lula Wanderley — que com sensibilidade e conhecimento conseguiu unificar os saberes com as experimentações, contribuindo para que o trabalho de Lygia não fosse perdido — , encontrei mais uma peça para os meus estudos. Mas, principalmente, ver a maneira com a qual minha filha interagia com a mostra, sentir como ela ressonava em mim, como a minha amiga a expressava, como as outras pessoas interagiam com ela e as suas reações, foi sentir que a arte não é apenas ponte entre nós. Ela vive dentro de nós, e a conexão espaço-tempo é o que necessitamos para senti-la.

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Muito se fala do “aqui e agora” . Há quem prefira o termo inglês mindfulness — estar presente em consciência no momento presente. A arte de Lygia incita a essa conexão espaço-temporal. O que as crianças sabem fazer tão bem, e que nós fomos esquecendo. A sua obra estimula a conexão dos sete sentidos, um estar presente por completo, de que o mundo corrido de hoje insiste em nos privar. A curadoria da exposição Lygia Clark: projet o para um planeta fez um trabalho majestoso, graças ao qual se pode vivenciar a importância de um percurso.

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<span class="hidden">–</span> Levi Fanan / Pinacoteca do Estado de São Paulo/reprodução
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