Quando eu tinha 14 anos, entrei na Escola Lucinda de Poesia Viva . O lema de Elisa Lucinda era “falar poesia sem ser chato” . Achei aquilo o máximo. Desde os meus 4, meu avô lia pra mim Ferreira Gullar e Cecília Meirelles . E me fazia comer frutas durante os livros. As melhores belezas se ouvem desse jeito, sentindo também o gosto que elas têm, dizia. Além disso, punha na agulha os LPs de Lupicínio Rodrigues e Orlando Silva . Meu contato prematuro com certa profundidade de sentimentos e o excesso de pensamento foi inevitável. Uma maneira maravilhosa de formar meus sentidos e me constituir como um ser poético: que vê coisa onde não tem e vê tudo em todas as coisas. Acabei crescendo um pouco sem lugar entre Barbies , New Kids On The Block e o Tivoli Park.
Elisa tinha, sempre tem, um ponto: muita gente, equivocada, não suporta a poesia . O que eu queria naquela época era conviver com pessoas nada equivocadas; ter lugar. É certo que isso acontece muitas vezes pela solenidade a que, por tanto tempo, a poesia foi submetida. A palavra declamação. A impostação dos púlpitos, os versos alexandrinos arcaicos, a complexidade da Ilíada, o hermetismo de um monólito. Como não pudesse ser ela também um assunto ordinário, um bilhete, um samba, conversa de ônibus, linguagem de morro, uma placa de rua, o que registra a caixa do supermercado. E muito mais o silêncio. A poesia é, na carne, o que me faz encarar, à disposição da beleza, a repetição dos dias.
Elisa nos ensinava a falar poemas como se conversássemos. Mesmo os mais rimados, metrados, os sonetos, os haicais. Como se não houvesse qualquer contratempo entre nós e aqueles versos. Como fossemos nós o coração que os escrevera. Nós, os poetas. Que somos mesmo, todos. Isso se não estivermos chatos o suficiente para não nos percebermos assim. Aos 14, na casa de Elisa, comecei a achar legal ter em Adélia [Prado] , minha Madonna e em Jhonatan, meu Beatle preferido.
A maioria das alunas eram mulheres e mais velhas do que eu. Que nós, digo, pois lá estava também Maria Resende , poeta carioca que sente tudo com uma vontade que poucas vezes vi antes e dali pra frente. Adorei Maria e sua integridade escancarada. Éramos as duas “filhas” de Elisa, de sua escola. O que aconteceu, além de um mergulho no mundo desencantado de Fernando Pessoa que acabou com tudo que restava de infância em mim, é que Elisa cismou que eu tinha que falar Adélia. E muito Adélia. E sempre que possível, Adélia.
“A Moça na Sua Cama” , era o favorito dela na minha voz. Eu me perguntava o motivo mas no fundo não queria essa resposta. Fato é que só a partir de Adélia, Like A Prayer passou a fazer algum sentido. E o sentido da poesia como Deus(a). A poesia é o nome forte que as coisas têm. Em mim, que aprendi a escrever “elevador” antes do meu próprio nome. E nunca mais quis ser outra coisa.
Antes do Nome
Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o «de», o «aliás»,
o «o», o «porém» e o «que», esta incompreensível
muleta que me apoia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.
Esse texto sou eu celebrando a poesia desde cedo em minha vida; as mulheres que teimam em fazê-lo. Porque é preciso coragem pra olhar as coisas e ver. Tudo que, por estar fora da coisa, a constitui. Agora, pra escrever o que se vê, é preciso mais. Tem que ter audácia, desaforo. O esplêndido caos de onde emerge a sintaxe. Mulheres que comemoramos prêmios que ainda levam nomes de homens. Mesmo tendo sido Enheduana , poeta e sacerdotisa, filha do Rei Sargão I da Acádia, a primeira pessoa a assinar autoria de um texto, mil e quinhentos anos antes de Homero .
Viva Elisa Lucinda, Maria Resende e Adélia Prado! Viva toda mulher que empresta sua vida abalável às palavras!
Sedução
A poesia me pega com sua roda dentada,
me força a escutar imóvel o seu discurso esdrúxulo.
Me abraça detrás do muro, levanta
a saia pra eu ver, amorosa e doida.
Acontece a má coisa, eu lhe digo,
também sou filho de Deus, me deixa desesperar.
Ela responde passando
a língua quente em meu pescoço,
fala pau pra me acalmar,
fala pedra, geometria,
se descuida e fica meiga,
aproveito pra me safar.
Eu corro ela corre mais,
eu grito ela grita mais,
sete demônios mais forte.
Me pega a ponta do pé e vem até na cabeça,
fazendo sulcos profundos.
É de ferro a roda dentada dela.