Quando Angela Davis veio ao Brasil em 2019, para um debate público promovido pelo Sesc-SP, ela iniciou sua fala lembrando de outra pensadora revolucionária. A conversa era sobre liberdade e democracia e, portanto, fazia mais do que sentido evocar aquelas que dedicaram suas vidas à transformação social. “Eu me sinto estranha quando sinto que estou sendo escolhida para representar o feminismo negro. E por que aqui no Brasil vocês precisam buscar essa referência nos Estados Unidos? Eu acho que aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês poderiam aprender comigo”, ela disse.
Por algum tempo, a obra e o pensamento de Lélia Gonzalez (1935 – 1994), uma das intelectuais precursoras do feminismo negro, permaneceram um tanto apartados da visão pública. Na última década, no entanto, as obras da antropóloga foram revisitadas como um importante canal para entender o presente, especialmente no que tange à violência e discriminação contra pessoas negras no Brasil. Felizmente, algumas iniciativas recolocaram a pesquisadora em seu devido patamar de importância. A primeira foi a instalação em Belo Horizonte, cidade natal de Lélia, de uma escultura de bronze de Lélia e da escritora Carolina Maria de Jesus. A segunda é a exposição, recém-inaugurada no Sesc Vila Mariana, em São Paulo, inspirada em uma das obras da pesquisadora, “Festas populares no Brasil”.
O livro, de 1987, foi o único publicado pela autora ainda em vida, e traz um panorama das festas tradicionais celebradas por todo o país e a herança africana que elas carregam, apesar de tantas tentativas de apagamento dessas raízes. O Sesc, representado pelas curadoras Glaucea Helena de Britto e Raquel Barreto, resolveu interpretar a obra numa mostra expositiva.
Etiene Martins, que idealizou o memorial em homenagem à Lélia em Belo Horizonte, destaca que o pensamento de Lélia, em 2024, se mostra mais contundente do que nunca. “Lélia é uma referência incontornável para compreender as relações raciais e de gênero no Brasil. No contexto de redemocratização, quando ainda se debatia se existia ou não racismo no nosso país, as reflexões de Lélia foram muito relevantes. Os desdobramentos refletem atualmente, afinal, ela fez uma leitura do problema que as políticas de promoção da igualdade racial buscam solucionar, como a reserva de vagas nas universidades e o ensino da história da África e dos negros no Brasil nas salas de aula.”
Além disso, ela lembra que a pensadora foi pioneira no desenvolvimento do conceito de interseccionalidade. “Lélia denunciou o processo de branqueamento da sociedade brasileira, levando sempre em consideração os marcadores de gênero, raça, religião e classe, o que hoje chamamos de interseccionalidade.”
A exposição
Em cartaz até 24 de novembro, “Lélia em Nós: Festas Populares e Amefricanidade” convida o público a olhar para as manifestações populares fundantes de nossa cultura, criadas principalmente por comunidades negras. Dentre as festividades lembradas estão o Bumba-meu-boi, festas juninas, maracatus, cavalhadas, afoxés e o carnaval.
“A ideia da exposição nasce do desejo de apresentar o pensamento da autora sobre as festas populares e a cultura brasileira, em diálogo com as artes visuais, sobretudo com a arte contemporânea. Entendemos que são temas que se encontram, que dialogam. Buscamos mostrar na exposição essa interface entre a autora, as artes visuais e como alguns temas aparecem teoricamente na obra de Lélia, mas também visualmente em inúmeros trabalhos artísticos”, conta Helena de Britto, curadora e uma das referências nos estudos da produção de Lélia.
Helena publicou uma das primeiras dissertações sobre o pensamento de Lélia em 2005. “No primeiro momento, eu estava muito interessada na Lélia militante, na Lélia do debate sobre as relações de gênero e raciais, a Lélia teórica do feminismo negro. Nos últimos anos, tenho me interessado mais pela Lélia intérprete do país e como uma pessoa de circulação no mundo das artes, ligada à Escola de Arte Visual do Parque Lage”, explica a curadora. “Lélia foi alguém que procurou refletir, analisar, mas sobretudo transformar e atuar. Ela é uma intelectual de corpo presente, de mente ativa, com uma ideia mais orgânica do trabalho intelectual.”
Num circuito de cinco núcleos, estão expostas 105 obras, históricas e contemporâneas, em diferentes suportes como fotografia, pintura, performance e instalação. Há, inclusive, um precioso acervo de discos colecionados por Lélia. “O artista mais antigo da exposição é Heitor dos Prazeres, que nasceu em 1898, e um dos mais jovens é Rafael Simba, do Rio de Janeiro, nascido em 1998. Com 100 anos de diferença, ambos pintam e tematizam as festas populares.”
Na curadoria, as pesquisadoras mapearam artistas cujas poéticas estivessem voltadas para as festas populares. Apenas para um dos núcleos, que trata de Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira, as obras foram comissionadas, ou seja, criadas exclusivamente para a exposição.
“Concluímos, durante o processo de pesquisa da exposição, que as festas populares informam e formam o processo criativo de muitos artistas brasileiros. Esses artistas, muitas vezes considerados não acadêmicos ou nomeados de forma equivocada e preconceituosa como populares ou naifs—termos que frequentemente carregam um caráter hierárquico e excludente—têm em suas obras e práticas as festas populares como seu primeiro contato com as artes visuais. A primeira vez que essas pessoas entendem o que é arte não é pelo museu, mas pelas Congadas, folias de reis e Carnaval.”
Ela explica que o objetivo não era apresentar a história da pesquisadora, embora a exposição também funcione como uma homenagem a ela e uma celebração de seu legado. “É importante revisar o pensamento de Lélia Gonzalez como autora e pensadora essencial para entender a realidade social e cultural brasileira. Pelas artimanhas do racismo e do sexismo, houve um apagamento da presença e da importância da obra de Lélia. Revisitar o legado de Lélia é entender como ela propôs questões que continuam extremamente relevantes e necessárias para uma reflexão no Brasil.”
Junto à exposição, o livro “Festas Populares no Brasil” foi reeditado pela Boitempo e já está disponível para venda.
Duas das artistas que tiveram trabalhos expostos na mostra, relataram o seus processos artísticos. Nádia Taquary realizou uma obra comissionada, inspirada na vida e obra de Lélia.
Nádia Taquary
“Lélia é, sem dúvida para mim, uma grande representação do poder feminino de realização intrínseco às Yabás, as grandes mães da coletividade. Isso é nítido em sua luta por direitos humanos, igualdade racial e protagonismo feminino negro.
Neste trabalho, uso os fios de contas douradas, relacionados a Oxum e a Oxum Apará, aos elequês usados por seus filhos; o bronze, metal de Oxum; e a forma reina com seu penteado coroa, como a vejo enquanto grande liderança feminina, muito bem alinhada ao seu orixá. As asas estão associadas aos ventos de Oxum Apará, à liberdade e à proteção. Faço também através delas uma referência às grandes mães ancestrais, cujo poder de movimento e criação ligados à coletividade, identifico tão nitidamente em Lélia.
O rosto de bronze da minha série “Oriki é o que não se vê” fala tanto de uma história negada quanto da importante presença de mulheres negras em sua construção. Trago também a possibilidade de olharmos e nos reconhecermos enquanto potência ancorada nesse feminino ancestral.”
Bea Machado
Já Bea Machado ressignificou alguns de seus trabalhos criados entre 2022 e 2023 sob a luz da exposição. “As telas que estão em ‘Lélia em nós’ fazem parte das minhas séries ‘O Subúrbio é dentro da gente’ (2022-2023) e ‘Altares, festas e fé’ (série em desenvolvimento), com isso, eu não passei pelo processo de reinterpretar a obra de Lélia como motor para minha produção, mas sim o inverso: reavaliar o meu trabalho a partir da ótica de Lélia Gonzalez, o que reforçou para mim, que nasci e cresci no subúrbio carioca, a importância das festas populares, como o carnaval de rua e o samba, como uma maneira de formação de identidade, construção de comunidade e preservação cultural.”
Sesc Vila Mariana – Rua Pelotas, 141 – Vila Mariana
Até 24 de novembro de 2024; terça a sexta, das 10h às 21h; aos sábados, das 10h às 21h; domingos e feriados, das 10h às 18h.
Entrada gratuita