Em uma galáxia não tão distante da nossa realidade, Severino Olho de Dendê adquire a habilidade de testemunhar os últimos segundos da vida de pessoas que já morreram. O novo livro de Ian Fraser explora a trajetória do personagem com uma mistura, divertida e reflexiva, de artifícios da ficção científica com elementos do cotidiano de um cidadão nordestino, que precisa pagar boletos após protagonizar batalhas intergalácticas.
“Brinco que um jeito simples de resumir [a obra] é: ‘Star Wars’ abraçando ‘O Auto da Compadecida’. E os dois dançam forró”, afirma o autor ao iG Gente sobre “A vida e as mortes de Severino Olho de Dendê”. O baiano comenta que precisou “tomar muito cuidado” para tratar a representação da Bahia e do Nordeste na trama, se inspirando na imagem do padrasto para levar a “baianidade” para a história.
“Não queria tratar o Nordeste para o lado do sofrimento, da seca e da miséria. Ou do ser que está em eterno exílio buscando a vida em outro lugar, onde o terreno está lutando contra ele. Queria os dilemas mais mundanos, como ter boleto para pagar [...] Ao longo da narrativa, isso vai se desdobrando e mostrando camadas de um personagem que não é só uma caricatura de um ser alegre, farrista e que gosta de beber. É um ser que também tem fantasmas e carrega dores”, avalia.
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Ian tem na escrita o que apelida de “easter-eggs” locais, facilmente reconhecidos pelos soteropolitanos, além de personagens com características que diferenciam o livro dentro do gênero literário da ópera espacial. Ao invés do imaginário de extraterrestre já conhecido por obras internacionais, conhecemos no projeto de Fraser desde uma criatura alienígena com fitinhas do senhor do Bonfim amarradas no cabelo, até uma capivara geneticamente modificada e humanoide agindo como fiscal da lei.
“O brasileiro quer se ver nas obras, quer que as obras sejam espelhos de futuros possíveis ou de presentes possíveis [...] Dá para fazer um Star Wars com a gente. Isso traz um ganho de orgulho e de acolhimento para que o leitor possa se reconhecer e dizer: ‘Eu faço parte de narrativas épicas’. Acho isso muito importante, até para termos um mercado com mais nossa cara, com mais nosso jeito de viver e falar”, analisa.
Ian observa como o Brasil ainda está acostumado com “representações muito fortes” de projetos artísticos do Sul e Sudeste, o que torna um livro com destaque ao Nordeste “fundamental” para propor a identificação entre os leitores. “Se olharmos isso pelo âmbito político atual, vemos a importância do Nordeste, da educação e de ações políticas, e como isso reflete até na política e na vivência do povo nordestino. É um recorte fundamental e precisa ser analisado para entender o contexto do Brasil atual”, pondera.
A conexão do público com a narrativa também se dá pelos temas explorados ao longo da história, como a morte. O escritor explica que esta é uma temática recorrente em todos os livros que já publicou, como a saga “Araruama”, e em “Severino”.
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“Consigo ver muita poesia nas reflexões sobre a morte. E quando a gente vê poesia, vê beleza. Não consigo olhar para a morte como um ponto final derradeiro, macabro. Não vejo com um olhar pessimista, olho com muito otimismo, de que é isso aqui que a gente tem. Se tem mais depois, aí a gente vai descobrir”, propõe Fraser, que ressalta a tranquilidade "mediante a realidade da vida" do processo de escrita sobre a morte.
A ideia de escrever sobre as mortes do protagonista Severino veio de outra constante da vida do autor: o cinema. Formado na área, viu na literatura uma oportunidade de “extrapolar a criatividade” e se inspirou em uma fonte textual para iniciar o novo livro. “A vontade de escrever ficção científica já estava comigo há algum tempo. Mas imaginar um Nordeste conquistando as estrelas, por si só, não é uma trama [...] Trabalho com edição de vídeo e de imagem, vi uma fonte 3D massa e o visual começou a borbulhar sinapses aqui”, aponta.
Enquanto explorava a descoberta, chegou ao mote principal ao escrever com a fonte “Severino, casca de bala” e decidir que contaria a história de “um homem que nem a morte matou” com um ritmo cinematográfico. “Esse livro é o mais próximo que vou conseguir de fazer um livro cinematográfico. Tanto é que a diagramação do primeiro capítulo é para ser aquele começo [de um longa], com os cortes para os créditos iniciais como se fosse um filme mesmo”, ressalta.
Da capa às últimas páginas, o projeto gráfico da obra ainda se destaca por diversas citações musicais e fontes alternadas que mesclam o texto e deixam a leitura ainda mais interativa. “Espero que os leitores consigam ter essa sensação do cinema, de tomar Coca-Cola e pipoca. Só que no caso do Severino, é Coca-Cola com acarajé”, conclui.
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