Viola Davis em 'A mulher rei'
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Viola Davis em 'A mulher rei'

“A mulher rei”, finalmente, está entre nós. O longa tem pré-estreia no Copacabana Palace amanhã e só entra em circuito na quinta-feira (22), mas Viola Davis, sua razão maior de ser, já está hospedada no hotel. Ela chegou ontem ao Rio, onde fica até terça, em sua primeira viagem ao Brasil, país presente no longa e há tempos em declarações daquela que é considerada uma das maiores atrizes de sua geração.

Aos 57 anos, Viola, como pede para ser chamada em conversa com jornalistas dias antes de embarcar, é uma das 15 mulheres, e a única negra, laureadas com a tríplice coroa da atuação nos EUA. Recebeu o Tony (por “Rei Hedley II” e “Um limite entre nós”, peças do gigante August Wilson), o Emmy (pela série “How to get away with murder”, sucesso por seis temporadas) e o Oscar (atriz coadjuvante, em 2016, pela adaptação de Denzel Washington para “Um limite entre nós”).

Currículo que usou para convencer Hollywood da urgência de “A mulher rei” e do eventual retorno financeiro do épico histórico. Não foi fácil. A superprodução estimada em US$ 50 milhões foi filmada na África, com protagonistas negras, e pela perspectiva das agojie, guerreiras do antigo Daomé, no distante 1823. Localizado no atual Benin, na África Ocidental, o reino foi marcado por séculos de escravização de negros, boa parte deles destinada aos portos brasileiros. Dois personagens (papéis dos britânicos Jordan Bolger e Hero Fiennes Tiffin) falam português e traficam escravos para o Brasil.

"Batalhei por sete anos antes de filmar qualquer cena de luta. Lutei para o filme sair do papel, para ter a diretora e o elenco que queria, filmar onde e como queria, com o orçamento que precisávamos", conta. "Sabia que Hollywood se assustaria com um filme produzido, atuado e dirigido por mulheres negras. Mas isso era problema deles. Para mim, não há nada de estranho: ele se parece comigo, com minha vida, com minha história".

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O rosto sem pintura da atriz está na autobiografia “Em busca de mim” (Record), lançada este ano, radiografia pungente da pobreza e do racismo americanos, em que Viola relata episódios de violência doméstica, traumas profundos e a discriminação no trabalho, universo distante dos tapetes vermelhos.

Do lado de lá da tela, a atriz, em impressionante forma física, pega em armas na pele da general Nanisca, que, por seus feitos militares e capacidade de liderança, se torna cogestora do reino.

"Nas filmagens, eu era a velha guerreira, né? Em alguns momentos, achei que iria morrer (risos). Não tinha dublê. O treinamento físico, as artes marciais, foi muito puxado", diz Viola.

No elenco de “A mulher rei”, se destacam ainda a sul-africana Thusa Mbedu, a inglesa Lashana Lynch e a ugandesa Sheila Atim. John Boyega, o Finn da última trilogia de “Star wars”, vive o rei Ghezo. A direção é de outra artista negra, Gina Prince-Bythewood (de “A vida secreta das abelhas”).

Panteras negras

É Gina quem cita como influências diretas tanto “Coração valente”, de Mel Gibson, pela ambição histórica, quanto “Pantera Negra”, de Ryan Coogler. Entre os destaques do filme da Marvel, que teve bilheteria mundo afora de mais de US$ 1,3 bilhão, estavam as Dora Milaje, guerreiras de Wakanda — inspiradas justamente nas agojie de Daomé.

"A partir daí, fizemos uma minuciosa pesquisa. A história dos negros, nos EUA, é ensinada pela escravização. Não há espaço para outras narrativas, de negras guerreiras que combatiam, inclusive, o próprio tráfico de escravos", diz Gina, que também dirigiu “The old guard”, sucesso de audiência da Netlifx.

Blusa amarela sob terno lilás, sorriso largo, a Viola da videochamada feita de um hotel em Nova York parece estar de fato a dois séculos de distância da Nanisca de “A mulher rei”. Mas é impossível não pensar na capacidade de articulação da comandante das amazonas africanas ao ouvir a atriz falar com clareza sobre as dimensões sociais e políticas do filme:

"Me inspirei naquelas guerreiras de Daomé. E não só pelo seu protagonismo surpreendente: quis colocar o dedo na ferida daquilo que não nos foi devidamente dito. Queria gritar que nós todas temos uma voz e que podemos usá-las. Ninguém vai nos dizer o que fazer com nossos corpos, que não somos capazes, que não nos adequamos a padrões de beleza. Basta."

Denúncia e delicadeza

Além da faceta épica, “A mulher rei” também conta com uma outra, mais intimista, centrada na sororidade das guerreiras e, especialmente, na relação misteriosa da personagem de Viola Davis com a jovem Nawi, órfã recrutada pelas agojie.

O papel ficou com a atriz sul-africana Thuso Mbedu, elogiada por sua Cora, protagonista da série baseada no celebrado livro “The underground railroad: os caminhos para a liberdade”, de Colson Whitehead. No filme, Nawi leva Nanisca a revisitar momentos trágicos de seu passado e a refletir sobre a superação do abuso sexual e da maternidade indesejada.

"Você precisa ser honesta até mesmo, e especialmente, com a tragédia, os erros de suas personagens. Mesmo que ela faça escolhas que você, na vida real, não faria", diz Viola.

A atriz conta que foi crucial ler, durante as filmagens, um “livro importantíssimo sobre sobreviventes de abuso sexual que a Gina [Prince-Bythewood] me indicou”.

"Foi 'Fome: uma autobiografia do meu corpo', da Roxane Gay. Ela foi estuprada por vários homens ao mesmo tempo quando tinha 14 anos de idade. E ainda hoje, aos 47, procura caminhos para lidar com os efeitos da violência a que foi submetida. Esta é a experiência que você tem quando se é abusada,é como se aquele corpo não fosse mais o seu. E isso pode te acompanhar durante toda a vida e causar todo tipo de sequelas", diz a atriz.

Viola frisa ainda que, “mesmo quando você tem uma espada”, como no caso de sua personagem em “A mulher rainha”, um filme declaradamente feminista, antirracista e de denúncia ao colonialismo europeu, “aquela agressão jamais deixará sua memória”.

"A sobreposição de imagens escolhidas pela Gina ao retratar a violência que a protagonista viveu foi guiada pela delicadeza, como tinha de ser. Mostra que Nanisca é sim “rei”, mas, também, mais uma mulher querendo sobreviver. Tivemos muito cuidado ao mostrar que havia algo mais na trajetória da guerreira", diz Viola.

A agenda carioca da atriz, que é casada desde 2003 com o ator e produtor Juluis Tennon, com quem adotou a menina Genesis, hoje com 12 anos, não foi divulgada pela distribuidora do filme, além da presença em uma coletiva de imprensa e na pré-estreia de “A mulher rei”.

Fã declarada do país e de sua cultura — há dois anos comprou os direitos de “Beijo no asfalto”, de Nelson Rodrigues, para montagens nos EUA — , ela vê no Brasil, destino da maioria dos negros escravizados, endereço natural para se destrinchar e combater o racismo, missões que a norteiam dentro e fora das salas de cinema.

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