Desde que o presidente Jair Bolsonaro ameaçou extinguir a Agência Nacional do Cinema (Ancine) caso não haja “filtro”sobre a produção brasileira, na semana passada, servidores que analisam se filmes e séries estão aptos a captar recursos trabalham apreensivos.

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Segundo o GLOBO apurou com funcionários da Ancine , que pediram para ter seus nomes preservados, há o temor de se aprovar algo que desagrade ao Planalto. Os servidores já se perguntam se podem sofrer algum tipo de retaliação caso deixem passar obras que o governo considere inadequadas.

A preocupação é particularmente maior com produções que tratam de sexualidade, de questões indígenas e ambientais e de ativismos em geral.

"Há insegurança e conservadorismo autoimposto na aprovação dos projetos", resume um funcionário.

Bolsonaro  criticou o repasse de verbas para filmes como “Bruna Surfistinha” (2011), sobre a ex-garota de programa Raquel Pacheco. Para ele, não se deve financiar o que considera “pornografia”. Nesta semana, o porta-voz da Presidência, Rêgo Barros, reiterou que o governo não vai patrocinar histórias que “atentem contra os valores éticos e morais” da sociedade.

A tensão motivada pelo “filtro” soma-se à causada pelo imbróglio com o Tribunal de Contas da União (TCU). No começo do ano, o órgão condenou a forma como a agência fiscaliza a prestação de contas dos filmes. Justamente para não expor funcionários ao risco de aprovar algo que poderia ser considerado irregular posteriormente, o diretor-presidente da agência, Christian de Castro, paralisou as atividades do órgão entre abril e maio. Mesmo com as atividades retomadas, muitos sentem-se juridicamente inseguros, temendo virar alvo do TCU no futuro.

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Por fim, há a preocupação com a transferência da sede da agência do Rio para Brasília. A medida foi comentada pelo presidente mais de uma vez na semana passada, mas até agora a mudança não foi comunicada formalmente.

Servidores preparam agora uma carta aberta com dados que dimensionem o papel da agência para a indústria do audiovisual e defendam sua imparcialidade em relação aos projetos aprovados.

"A Ancine não avalia o conteúdo das produções, apenas se elas atendem a critérios técnicos", diz um deles.

Diretoria em aberto

O documento também vai defender que o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), principal mecanismo de fomento do setor, permanência sob a gestão da Ancine. Isso porque, na terça-feira, o governo anunciou que estuda realocar o FSA na Secretaria especial de Cultura, subordinada ao Ministério da Cidadania. O Fundo soma mais de R$ 700 milhões a serem investidos em filmes, séries e programas de TV em 2019.

Procurado novamente pelo GLOBO para falar sobre a crise, o diretor-presidente da agência, Christian de Castro, não quis dar entrevista até o fechamento desta edição.

Atualmente, há uma vaga na diretoria colegiada da Ancine, que responde a Castro. O espaço foi aberto com a renúncia de Mariana Ribas no começo do ano. Ela deixou a agência para assumir a secretaria municipal de Cultura do Rio. Segundo o colunista Lauro Jardim, do GLOBO, o nome mais provável é o da diplomata Paula Alves de Souza, diretora do departamento cultural do Itamaraty.

Enquanto parâmetros para o filtro sugerido por Bolsonaro não são fixados, especialistas se dividem entre os que veem a determinação como dirigismo cultural e os que sustentam que ela é censura pura e simples.

"O presidente está interferindo numa esfera que não é a dele com o objetivo de criar censura", opina José Carlos Vaz, professor de propriedade intelectual da Uerj e sócio do escritório Vaz e Dias. "A censura prévia foi abolida pela Constituição de 1988".

Para Vaz, seria equivocada também a noção de que o governo teria a prerrogativa de determinar quais obras devem receber ou não verba do Fundo Setorial “por ser dinheiro público”, conforme as palavras do presidente. Atualmente, a principal fonte do FSA é a arrecadação do Condecine, taxa paga pelas próprias empresas que atuam no segmento. Ou seja, não se trata de recursos oriundos de orçamento federal.

"Uma parte do fundo vem do setor privado. Não é um imposto, é uma contribuição. Esse dinheiro não é do governo, ele tem uma destinação específica para o audiovisual. O governo não pode colocá-lo em outro lugar".

Especializado em Direito do Entretenimento pela Uerj, o advogado Orlando Netto, do escritório Lins e Vasconcellos Advogados, afirma que a sugestão de impor um “filtro” pode ser compreendida como “dirigismo”.

"Não caberia à Ancine nem a parte alguma do arcabouço jurídico-regulatório do audiovisual entrar no mérito do filme. O que interessa é entrar em questões práticas, relacionadas ao orçamento, à viabilidade do projeto".

Indústria em alerta

Ele lembra que a insegurança sobre as regras que regem o funcionamento da indústria audiovisual pode levar à paralisia do setor, que corresponde a 0,5% do PIB. Um risco, por exemplo, seria inibir o investimento estrangeiro num momento de grandes mudanças globais no segmento, com a ascensão de novas plataformas de streaming.

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"Como em qualquer indústria, qualquer questão que gere insegurança pode paralisar os investimentos ou desincentivar novas produções, ou a vinda de novos agentes para o Brasil. Precisamos passar um recado de que aqui existe um ambiente regulatório saudável para a indústria", disse sobre a Ancine.

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