Na “Sessão de Abertura” da 17ª Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, na noite desta quarta-feira, a crítica literária Walnice Nogueira Galvão juntou seus estudos da obra de Euclides da Cunha , o autor homenageado, à sua trajetória pessoal e a história política do país.
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Walnice, que é professora da Universidade de São Paulo, contou na Flip que muito de sua pesquisa sobre Euclides aconteceu em Paraty, onde ela tinha uma casa de veraneio e vinha passar férias com seu filho pequeno. Num verão especialmente chuvoso, ela teve que ir a São Paulo e temeu que goteiras estragassem as milhares de folhas de pesquisa espalhadas pela casa.
Pediu ajuda a um amigo paratiense que colocou tudo em caixas e, depois, embaixo da própria cama. "Ele protegeu meu trabalho com seu próprio corpo", disse.
Walnice começou a estudar Euclides depois de terminar sua tese de doutorado sobre Guimarães Rosa, pois encontrou semelhanças entre os dois autores: ambos se interessaram pelas “entranhas do país”, o sertão, e “os homens que ali viviam, jagunços e cangaceiros”, são elaboradores da linguagem e têm “pendor para o arcaísmo, embora de modos diferentes”.
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Nos 1970, em plena ditadura militar, impedida de censura de se manifestar politicamente, procurou um objeto de estudo que lhe permitisse expor como funcionavam o exército e a imprensa. Estudou a cobertura jornalística da Guerra de Canudos e se espantou com a quantidade de “fake news” que os jornais da época, censurados pelo exército, publicavam.
O próprio Euclides acreditou que havia navios estrangeiros na costa baiana para auxiliar os monarquistas canudenses e que os sertanejos foram treinados por gringos.
– Não foi Donald Trump que criou as fake news . Talvez nós tenhamos esse privilégio – disse Walnice, arrancando risos da plateia. – A cobertura de Canudos foi uma das maiores fraudes da história do Brasil e todo mundo acreditou.
Um produto de seu tempo
Em suas pesquisas, Walnice também concluiu que Euclides, que foi para Canudos cheio de preconceitos, era um produto de seu tempo. Ou melhor: da Escola Militar da Praia Vermelha, onde eram ensinados os ideias da Revolução Francesa, como a República. Por isso, ele confiava tanto no exército e tinha horror à restauração da monarquia.
Euclides, depois de chegar ao sertão, não sabia mais para quem torcer, se para o exército ou para os sertanejos. Lá, ele descobriu que o Brasil autêntico não era o Rio de Janeiro de “brancos republicanos bem alimentados”, mas o sertão de “monarquistas católicos atrasados”
"Euclides se dá conta de que o exército era culpado do massacre dos canudenses. Mas, ao mesmo tempo, acreditava na missão civilizatória do exército."
Walnice terminou dizendo que “Os sertões” deve ser lido todos os dias para se entender “o que a modernização capitalista faz com os pobres desse país”. Após a masterclass, um telão projetou um vídeo com imagens de mortes ba periferia, ataques a povos indígenas e desastres como os de Mariana e do incêndio do Museu Nacional, criando ainda mais conexões entre a obra de Euclides e o Brasil de hoje.
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O convite à leitura política de Euclides começou antes mesmo da fala de Walnice. A curadora da Flip , Fernanda Diamant, afirmou que “a abordagem contemporânea da obra de Euclides guiou a concepção da programação”, dando o tom político que deve tomar a Flip nos próximos dias. Ela dedicou a “Sessão de Abertura” a seu companheiro, o jornalista Otavio Frias Filho, morto no ano passado, e ao João Gilberto “e ao Brasil que ele cantou”.