“Portanto assim diz o Senhor: Eis que trarei mal sobre eles, de que não poderão escapar; e clamarão a mim, mas eu não os ouvirei”. A frase é do livro de Jeremias capítulo 11, versículo 11. O trecho biblíco é referenciado em “Nós”, novo filme de Jordan Peele, e pode ser um elemento valioso para uma compreensão mais inteira e multifacetada da obra.
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Filme seguinte de Peele após o Oscar e o culto por “Corra!” (2017), “Nós” é conceitualmente mais sofisticado do que o antecessor – é um filme de terror com um comentário social com ramificações psicanalíticas e esteticamente mais ousado -, mas tem seu sustentáculo em truques de direção e fórmulas de roteiro.
Não é um demérito, até porque representa um avanço consciente de Peele em matéria de estilo e narrativa, mas é uma questão que precisa ser observada quando comentários como “o novo Hitchcock” começam a pipocar na indústria e na crítica.
A costura da atmosfera de horror é algo que o cineasta já demonstra dominar sem esforço. Aqui ele entrega ao menos duas grandes cenas que nada ficam a dever ao cânone do gênero. Uma delas é uma chacina ao som de Good Vibrations do The Beach Boys e outra em que um embate físico é coreografado como uma dança, algo que importa muito narrativamente.
Peele é um artesão e não tem nenhum pudor em demonstrar isso. Sai-se muito melhor na direção aqui do que em “Corra!” , pelo qual foi indicado ao Oscar na categoria, mas o roteiro tem gargalos. O fato de esta crítica pormenorizar o trabalho de Peele é, em si mesmo, um atestado de sua relevância para o cinema americano atual e do otimismo que enseja. É um autor a se observar de muito perto.
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O horror em nós
Logo no prólogo uma camiseta de Thriller , de Michael Jackson dá o tom. O parque de diversões parece especialmente assustador. Para além do traquejo da câmera, o diretor parece querer nos dizer algo. Essa sensação será recorrente em outras cenas aparentemente banais. Como quando coelhos surgem em meio aos créditos de abertura ou em uma consulta com uma terapeuta.
Este é um filme que trabalha com significantes e significados. Os signos, portanto, são mais reponsabilidade da audiência do que o eram em “Corra!”, ainda que muito do ritmo e do desenrolar da trama seja similar.
Conjugando referências que vão de Cronenberg a Hitchcock, o cineasta ilumina um pesadelo recorrente. Nós somos nosso pior inimigo.
Quem viu os trailers, que causaram comoção nas redes sociais, sabe que a família Wilson encontra uma versão de si mesma durante uma viagem de férias na praiana Santa Cruz. Cidade em que a matriarca Adelaide ( Lupita Nyong`o ) vivenciou um trauma na infância (o prólogo).
A ideia de deslocamento e de enfrentamento de uma situação incômoda como ponto de partida para o terror é poderosa em Peele.
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Antes do fim da primeira metade, os replicantes dos Wilson aparecem e eles não parecem ter pressa em expor suas reais intenções.
O comentário social aqui surge mais diluído do que no filme anterior, mas também é mais sofisticado. A segregação social, suas raízes, efeitos e circunstâncias dominam a cena dessa “invasão”.
Em um determinado momento, “Nós” se assume como distopia e mostra a polivalência de Peele enquanto realizador, pois além do bom trânsito entre terror e humor (o uso do humor para quebrar a tensão é muitíssimo bem aplicado), o cineasta adentra o terreno da ficção científica mais aguda para adornar seu plot twist.
Furacão Lupita
Vencedora do Oscar por “12 Anos de escravidão”, Lupita Nyong’o não só tem o melhor papel de sua carreira até o momento, como oferta seu melhor desempenho. Em papel duplo, como boa parte do elenco, a atriz arrasa. O medo que pulsa da obra emana eminentemente dela.
Tanto como Adelaide, essa mulher traumatizada e assombrada obrigada a lidar com um horror inominável, mas fundamentalmente como Red, uma “sombra”, como a própria define, de Adelaide, com impulsos sádicos e desejos obscuros, a atriz estarrece. A voz que desenvolve para Red é de dar calafrios.
Winston Duke, que assim como Lupita também esteve em “Pantera Negra” (2018), está fantástico como Gabe, o marido caricato. Ele é responsável pela principal válvula de humor do filme.
Há, ainda, de se observar a destreza de Elizabeth Moss, atriz soberba que está no filme muito provavelmente em virtude de seus predicados admiráveis como intérprete, e que sem falar muito, e com pouco tempo em cena, mesmeriza com uma performance essencialmente física.
Este é um filme em que a fisicalidade importa tanto quanto o psicológico e este é outro desagravo a se fazer ao trabalho de Peele enquanto autor.
Reverberações
Assim como em “Corra!”, o espectador se sente desafiado a reverberar o que assistiu. Esta é uma obra que rejeita a passividade. É preciso se lançar a ela, nela. Esse é um tipo de cinema especialmente em falta na Hollywood de hoje e se configura justamente no grande capital de Peele enquanto artista.
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Este é um trabalho de um artista destinado a ser grande e que tem essa ambição. Como segunda obra de alguém com essas características tem problemas, mas o sarrafo para Jordan Peele está bem alto. Sabores e dissabores de soar tão provocativo e inteligente.
“Nós” é cinemão para consumir com pipoca e refrigerante na sala escura e também é obra para se analisar na faculdade - e para alimentar rodas cinéfilas em bar. É uma produção tão completa, nos acertos e nos erros, que merece ser celebrada por tudo o que representa.