“Vidro” é o capítulo final de uma trilogia iniciada em 2000 e que durante muito tempo parecia que não teria desfecho. M. Night Shyamalan foi do Olimpo hollywoodiano ao inferno em três filmes e a ideia de retomar a história de David Dunn (Bruce Willis) e Elijah Price (Samuel L. Jackson) parecia destinada ao anedotário de Hollywood.
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Eis quando menos se esperava do engenho e capacidade de surpreender do cineasta, o indiano coloca uma cena no fim de “Fragmentado” que não apenas ressignifica todo o filme como pavimenta o caminho para uma inusitada terceira parte. “Vidro” é, portanto, tanto uma vitória pessoal como profissional de Shyamalan.
O cineasta obrigou dois estúdios detentores de propriedades intelectuais distintas (Universal e Buena Vista) a colaborarem no terceiro filme e se manteve como um dos poucos diretores em atividade em Hollywood a manter pleno controle sobre o corte final e o filme que chega aos cinemas não é um filme de estúdio. É um filme de Shyamalan. De cabo a rabo.
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Há a indefectível auto adulação que lhe é característica. O cineasta sabe que foi um dos primeiros a apostar no apelo dos heróis no cinema – “Corpo Fechado” foi feito antes do primeiro “X-Men” ser lançado – e não deixa que ninguém se esqueça disso. A metalinguagem é um instrumento narrativo presente no longa, bem como as dissertações a respeito do gênero que é o principal ganha-pão de Hollywood. Nesse sentido, a própria resolução do filme, o exacerbamento do anticlímax, pode ser lida como um comentário a respeito da visão do indiano tão contestada no alvorecer do século. “Vidro” é o dossiê de Shyamalan para expor Hollywood.
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Nesse raciocínio, o cineasta é o Mr. Glass , personagem de Samuel L. Jackson que tem uma mente privilegiada em uma inglória compensação pela fragilidade de seus ossos. Elijah assume a identidade de Mr. Glass quando enxerga em Kevin (James McAvoy) e na Fera, uma de suas 23 personalidades, a confirmação de sua teoria de que há heróis e vilões no mundo.
Em busca do Eu
David Dunn trabalha com equipamentos de segurança, mas dá sequência ao que entende ser sua missão na Terra: o vigilantismo. Ele conta com o apoio de seu filho Joseph, vivido pelo mesmo Spencer Trat Clark de “Corpo Fechado” e é durante um enfrentamento com Kevin, que continua sequestrando adolescentes impuras, que Dunn vai parar em um hospital psiquiátrico. O mesmo que abriga Elijah. Lá, ele, Kevin e Elijah são tratados pela doutora Ellie Staple, especialista em pessoas cujos transtornos as fazem crer que são super-humanas.
O filme caminha nos limites da interpretação e provê elementos tanto para aqueles que querem crer que os três são meta-humanos, como para aqueles que sentem a necessidade de se abrigar no guarda-chuva das explicações científicas. Isso até os minutos finais do longa, quando Shyamalan dá de ombros para as fórmulas do cinema de gênero e com uma coragem que apenas um realizador tão singular e, por que não arrogante, como ele poderia ensejar.
No limiar, “Vidro” é um filme sobre três homens tentando se entender e entender seu espaço no mundo, como o eram, de certa forma, os filmes que vieram antes, mas é também uma análise muitíssimo bem adensada de um gênero, de uma linguagem e de um conceito.
Isso tudo sem deixar os personagens de lado. Se os três protagonistas têm seus para-raios, e apenas a figura de Anya Taylor-Joy é inserida a fórceps no contexto dramático, ainda que sua funcionalidade narrativa seja verificada pelo roteiro e pela química da atriz com McAvoy, a arquitetura narrativa de Shyamalan permite que todos tenham relevo e momentos de redenção. O carinho do diretor com esse universo que ele criou é perceptível.
“Vidro” é um filme divisivo. Ele age contra expectativas, abraça e repele fórmulas com uma velocidade incomum e congrega todas as virtudes, mas também os vícios, de um cineasta tão polarizante como Shyamalan. É filmado como um filme de terror e se resolve como um thiller conspiratório. É, em certa medida, uma masterclass de cinema. Ou o último capítulo de uma.