Negra Li volta às raízes para projetar empoderamento e mira "virar referência"

A cantora explorou outros estilos musicais para que as pessoas pudessem ouvi-la e enxergar uma artista que vai além da cena do hip hop

Um dos nomes femininos mais populares na cena do rap nacional entre os anos 90 e os anos 2000, Negra Li está de volta ao cenário musical lançando seu novo álbum "Raízes", revelado em primeira mão ao iG Gente. A cantora, que fez parte do famoso grupo de hip hop RZO , com nomes fortes como Sabotage e Nego Jam, demostrou o desejo de ser referência não só nesse estilo, mas também como uma artista completa, que possui bagagem e conhecimento. 

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Negra Li fala sobre carreira, novo álbum, empoderamento feminino e apresentação no Tattoo Week


O retorno de Negra Li se dá em um cenário com nomes femininos fortes dentro da cena do rap como Mc Soffia, Rimas e Melodias e Karol Conká, e com a disputa pelos holofotes muito mais intensa.

De volta as raízes

Originária da Brasilândia, bairro da zona norte de São Paulo, a cantora trilhou um caminho inesperado para uma menina criada em família evangélica e cuja única referência musical eram os hinos da igreja. Seu quarto álbum solo mostra os 20 anos de carreira percorridos com experimentos entre o pop e o MBP, gêneros os quais Li demostra afinada intimidade. Suas raízes, porém, estavam cravadas no rap antes mesmo dela se dar conta disso.

Foto: Leonardo Vieira
Negra Li, cantora que começou sua carreira no rap, mas hoje busca ser referência em outros estilos musicais

"O primeiro disco que eu comprei, quando eu tinha 15 anos, foi do Planet Hamp. Eu já namorava com o rap sem entender ou saber nada dessa cultura. O rap que me escolheu na verdade, eu já tinha isso dentro de mim sem saber", conta.

As referências da artista, que antes eram o que os seus irmãos ouviam, que vão desde Racionais a Gabriel O Pensador, e também do grupo que fazia parte, fez a artista procurar o que de fato gostava, estando presente no seu novo trabalho. 

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Sem se sentir à vontade com a palavra retorno, a cantora deixa evidente o seu descontetamento com quem pensa que ela abandonou o lugar de onde veio ao começou a ser notada, mas sim partindo do ponto de ter liberdade para produzir e escrever o som que tem desejo de realmente produzir. 

"Eu não gosto muito de falar sobre retorno, é como se você tivesse saído e voltado, não, eu não sinto que saí e voltei. Não sinto que abandonei as minhas raízes, mas me sinto com mais liberdade para colocar nas minhas músicas, letras e produções tudo aquilo de referência que eu busquei", completando ao citar seu primeiro álbum "Guerreiro, Guerreira" (2004) como exemplo para aludir o que está vindo por aí, como também seu single de lançamento Malandro Chora , que faz parte do seu novo álbum "Raízes". 

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Negra Li relembra parceira com Charlie Bronw Jr, algo que a ajudou a se projetar fora da cena do rap


Nessa mesma pegada, com o seu nome bombando ao lado dos rappers nos anos 2000, Li relembra como Charlie Brown Jr. também foi uma parceira de sucesso e importante para ser conhecida além da cena do hip hop . " Não É Sério , parceria com o Charlie Brown, foi uma música muito especial porque mudou a minha vida além do RZO, porque se não fosse eles, não surgiria a oportunidade com o Charlie porque até então eu só era conhecida nesse meio". 

O single em que a banda e a artista trabalharam juntos surgiu por acaso, um acaso certeiro repleto de lembranças e êxito que conquistou diversos fãs. "Foi uma série de coincidências porque ele havia chamado o grupo e era para ser uma música com todos cantando. Tinha tantas pessoas que a música ficou cheia que o Chorão disse que não cabia mais a minha voz". 

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Negra Li relembra parceria com Chorão, do Charlie Brown Jr., como um dos momentos mais marcantes da sua carreira

Mas, por intuição, a parceira não parou por ai. "Ele mostrou outro rap em uma fita cassete e pensou que eu pudesse criar alguma coisa em cima. Levei para casa e comecei a ouvir, mas não surgiu inspiração alguma. A fita foi rolando até que eu virei e descobri no outro lado outra música, que no fim tinha um solo de guitarra e eu comecei a compor sem noção alguma, mas não se compõem em cima de solo de instrumento, porém eu fiz a minha parte", revela. A artista relembra que por fim seu parceiro gostou da versão, que "foi criada meio sem querer", assim fazendo sucesso entre o público jovem. 

Negra Li também quer ser referência 

Desejando ser uma artista desde nova, Li - que viveu o sonho de sua mãe ao vingar na música - sabia que tinha que buscar suas próprias referências para criar seu estilo. "Quando eu entrei no RZO, eu que fazia os refrões, então precisava de uma referência mais melódica. Passei a escolher Lauryn Hill, Erykah Badu, Jill Scott... Passei a estudar blues, jazz, MBP, Bossa Nova. A Elis Regina também passou a ser uma das minhas maiores referências, sei cantar as músicas dela nota por nota". 

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Tentando ingressar em outros cenários, a artista recupera como a indústria musical não recebia bem a ideia de artistas que tentavam transitar por outros gêneros. "Acho que o estilo que sempre quis fazer de verdade aqui, que lá fora é chamado de rhythm and blues (R&B), é uma mistura com o pop e a soul music. Porém, nas gôndolas de CDs dos supermercados aqui no Brasil eu não ia me encaixar nisso, porque não era brasileiro". 

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Negra Li fala sobre o estilo que realmente quis seguir e seu novo trabalho, o álbum 'Raízes'


Ela cita Iza e Anitta como representantes do estilo que, segundo ela, tinha pensado lá em 2008, mas não foi ouvida, porém agora está trazendo em "Raízes". Li ressalta que todo o esforço que fez e faz durante a carreira na verdade é para se tornar um modelo a seguir. "Eu quero me tornar referência, quero ouvir as cantoras mais novas quando tiver sessenta anos dizer: 'Eu ouvia Negra Li'. As pessoas me substimam porque acham que eu vim do rap e isso não é música. Quero que entendam que eu sou uma cantora capaz como tantas outras que são fortes nomes como a Elsa Soares, Marisa Monte e a Elis Regina", comenta. 

Essa relevância já está sendo construída ao enxergar que sua posição como uma cantora negra abre espaço para outras artistas. Um tanto modesta ao reconhecer seu valor, ela recupera momentos opressores no começo da sua caminhada, porém fazendo ressalvas. "Eu entrei em um mundo super machista, só tinha eu de mulher, mas não posso falar nada porque se o RZO me aceitou era porque eles não eram tão machistas assim". 

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Negra Li fala sobre a opressão que passava por ser a única mulher em um grupo de rap, o RZO

A personalidade de Li começou a ser atingida, mudando seu comportamento com as amigas, como por exemplo, ao lembrar que apenas copiava os gestos dos outros integrantes para não passar a imagem de uma "mulher fácil". 

"Não tinha poder de voz, era muito podada. Quando cheguei ao grupo disseram que eu não poderia usar saia no palco, nem cumprimentar com beijo os manos porque isso não era legal, e nem muita risadinha. Eu não tinha consciência nenhuma, simplesmente fazia e achava que eles estavam certos. Eu falava: 'eu não posso ser mulher fácil, não posso ser vagabunda', porém de certa forma me preservou. Entretanto não acho que você deve impor regras para uma mulher, como ela vai agir ou se vestir". 

Música além dos palcos

Casada e mãe de dois filhos, Sofia e Noah, a cantora diz que sempre buscou esse status de família e que seu pensamento foi mudando ao longo das tantas madrugadas que passava acordada para subir ao palco, o que já não estava mais trazendo motivação, principalmente após a maternidade. Com o lançamento do disco "Tudo De Novo" (2012), conseguiu fazer com que as pessoas prestassem atenção no que queria dizer. 

"Eu comecei a fazer shows e ir para casa mais cedo. Cantando de madrugada, as pessoas não prestam atenção, a balada foi feita para dançar. Eu gosto de fazer shows e ver que as pessoas estão ouvindo o que estou falando. Esse é o meu objetivo de vida e carreira e vou alcançar", afirma. 

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Negra Li fala sobre maternidade e a indústria musical


O cenário musical foi observado em outro ponto, quando Li  atenta a como os nichos musicais estão atingindo diversos tipos de pessoas. "Antes você sabia quem eram as pessoas que curtiam rap, mas hoje, qualquer um pode curtir o som, desde o sertanejo ao hip hop". 

A cantora vê com bons olhos o impacto da internet sobre a indústria da música. "Eu vou falar mal de gravadora? Não, eu peguei o melhor momento para se ter uma gravadora trabalhando por trás. Agora eu não preciso. Eu tenho a gravadora do meu empresário, que é pequena por enquanto, mas que é o melhor jeito. O escritório dele vende os meus shows, dá o estúdio para produzir, vende minhas músicas. Isso que as gravadoras estão correndo atrás porque elas podaram muita gente, segurou muito, puxou muita gente para trás". 

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Negra Li está lançando o seu novo álbum 'Raízes'

"É culpa deles? Não, era muito grande, cada um pensava de um jeito, tinha muito orgulho envolvido e isso atrapalha quando tem muita opinião. Agora quando o artista tem espaço para lançar o seu próprio trabalho, aí foi maravilhoso", sobre o espaço nas plataformas digitais que os mesmos estão conquistando. 

Trabalhando recentemente na série "Z4", do SBT, Li gosta das experiências artísticas e dos convites que surgiram ao longo da carreira, como os musicais "Chapeleiro Maluco" (2013), "Jesus Cristo SuperStar (2014) e o "Musical MPB" (2018). Antes, já tendo estreiado a série e o filme "Antônia" (2006 e 2007) e "400 contra 1 - Uma História do Crime Organizado" (2010). 

Malandro Chora 

Segundo a cantora, ela mesma não sabia o tamanho da sua representatividade que também inclui o visual, como também no single Malandro Chora , que mostra o poder feminino e uma letra romântica. 

"Eu resolvi soltar esse trabalho primeiro por causa do verão, da batida. E mesmo a música falando de amor, na letra também está 'a preta te fisgou', já é uma afirmação, uma forma de empoderamento. Então tudo o que eu faço é relevante e vejo isso com o meu público, eles estão sempre falando que eu sou inspiração". 

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Negra Li lança 'Malandro Chora', sua nova música de trabalho

Com uma som vibrante, cores, estampas e muito poder, a artista contou que enxergou o cenário da sua música no samba, algo que conseguiu retratar pelas ruas de Embu das Artes, região metropolitana de São Paulo. 

"Eu enxerguei essa música com referências do samba, muito parecido com o
Rio de Janeiro, por mim, gravava no Rio, mas assim o jeito que queria, as casinhas, as
ruas com paralelepípedos, acho que a gente conseguiria em São Paulo, então diretor me
apresentou Embu. Conseguimos um ambiente parecido com o que me remetia a música, com
esse jeito de malandro, esses sambas do Bezerra da Silva, Cartola", revela. 


A nova música está no repertório de apresentação da cantora na 8ª edição Tattoo Week, convenção de tatuagens que marca presença na capital paulista no dia 20 de outubro, ao lado de tantas parcerias de sucesso que fez ao longo da carreira. Sem ter nenhuma tatuagem, Negra Li mostra que a influência religiosa foi o fator principal para ter um pé atrás, mas que seu pensamento mudou. 

"Acho bonito o trabalho e o talento. Antes era um pouquinho preconceituosa por conta de vir de uma família evangélica, mas hoje não, você vai crescendo e amadurecendo e vê que cada tatuagem conta uma história, tem um significado. É também uma forma de empoderamento, é minha pele, vou guardar isso em mim (risos). Já estou até inspirada, quem sabe eu também não faço uma lá", conta Li que também vai abrir o concurso Miss Tattoo, a premiação para escolher a mulher tatuada mais estilosa do evento. 

Foto: Divulgação
Negra Li é destaque na Tattoo Week 2018


Todos esses passos de carreira foram projetatos ainda menina, sonhando pelas ruas da Brasilândia. "Eu olhava para aquele mundo e pensava: 'Não, eu não vou ficar só aqui, eu vou viajar'. Eu fazia alguns bicos entregando panfletos no farol e já pensava: 'Um dia só eu que vou pegar os folhetos, vou pegar todos, quando tiver o meu carro'", conta. 

Com a inocência de uma criança, mas a grandiosidade de uma mulher, a fama tinha caminho certo, ao se projetar além do talento, mas também com consciência. "Uma vez minha mãe abriu a porta do armário, estava vazio, e ficava preocupada com o que ia colocar na mesa para comer. Eu estava no meu quarto dançando, abria a porta e disse: 'Mamãe, um dia eu vou ser muito famosa e vou te ajudar'". 

Com mérito, a fama e o sucesso chegaram e apresentaram Negra Li quebrando barreiras e conquistando o cenário musical, que agora poderá ser observado em seu novo álbum, projeto que inspira, mas também deixa uma ponta de ansiedade para (re)descobrir uma artista que escolheu qual caminho queria seguir.