Fazer shows ao redor do mundo faz parte da agenda de um artista internacional, entretanto, embarcar em turnê em alguns países nem sempre é uma tarefa simples, como é no caso de Israel. O Estado, que este ano completa 70 anos de existência, sempre teve uma imagem controversa na comunidade internacional.

Desde o seu nascimento,  Israel esteve envolto em polêmicas por suas políticas de segregação entre judeus e árabes. Além disso, a ocupação dos territórios palestinos não só ocasionou na expulsão de diversas comunidades da região sem a garantia de retorno, mas também privou aqueles que vivem nos chamados territórios ocupados (caso de Gaza e Cisjordânia) de seus direitos básicos como o acesso à água e a livre circulação pela região. Esse cenário levou diversos artistas a se esquivarem de realizar apresentações no Estado trazendo à tona a situação para os tabloides mundo afora. O caso mais recente foi o da cantora neozelandesa Lorde , que após anunciar a passagem da sua turnê em Tel Aviv, recebeu diversas críticas de seus seguidores nas redes sociais e acabou cancelando sua passagem por lá.

A cantora Lorde foi uma das artistas a cancelarem shows em Israel depois de entrar em contato com a narrativa do BDS
Will Heath/NBC
A cantora Lorde foi uma das artistas a cancelarem shows em Israel depois de entrar em contato com a narrativa do BDS

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O episódio, por sua vez, gerou uma movimentação bastante significativa nos meses seguintes. Ainda em dezembro de 2017, o embaixador de Israel na Nova Zelândia, Itzhak Gerberg, convidou a cantora para uma conversa, afirmando que o boicote representaria "hostilidade e intolerância" ao seu país. A situação reverberou até o final de janeiro, quando a Justiça foi acionada e, como reportou o jornal estadunidense The Washington Post, Lorde foi “a primeira artista internacional a incitar um processo judicial por cancelar o seu show no Estado Judeu”.  Na ocasião, o Centro de Direito de Israel, Shurat HaDin, entrou com uma ação em nome de três adolescentes israelenses e fãs da artista contra dois ativistas neozelandeses ligados ao movimento BDS (Boicote Desinvestimentos e Sanções) pedindo indenização pelos danos causados.

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O movimento BDS, por sua vez, não é uma novidade. A ideia surgiu ainda com o apartheid na África do Sul como uma forma da comunidade internacional unir forças tentando enfraquecer o regime de violação dos direitos humanos que ocorria no país.

Em 2005 a ideia chegou até o Oriente Médio, como explica Pedro Charbel, coordenador do BNC – BDS Comitê Nacional para a América Latina. “O movimento BDS começou com um chamado do povo palestino a todas e todos nós ao redor do mundo, inclusive nós brasileiros. O objetivo é pressionar Israel a respeitar o direito internacional, rompendo os vínculos de cumplicidade e apoios diretos ou indiretos à colonização, apartheid e ocupação perpetradas contra o povo palestino”. A cantora Lorde, por sua vez, não é a primeira artista a promover o boicote ao país: o guitarrista Roger Waters, o britânico Elvis Costello, a banda indie The Pixels e até mesmo o guitarrista mexicano Santana também já foram músicos que optaram por não se apresentar no país.

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Se por um lado há um movimento que questiona a forma como o Estado foi construído, por outro há uma tentativa de normalizar a situação, fazendo da produção cultural uma grande aliada. “Em 2005, Israel iniciou, inclusive, um esforço publicitário oficial chamado ‘Brand Israel’ [Marca Israel, em tradução livre], cujo objetivo é criar uma imagem moderna e positiva do regime israelense, instrumentalizando a cultura para desviar o debate sobre as violações de direitos humanos e do direito internacional”, explica Charbel. “Esse esforço atinge de festivais de cinema e gastronomia a shows internacionais, de eventos esportivos a viagens gratuitas para celebridades e influenciadores digitais”, completa.

Por que misturar arte e política?

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Divulgação

Roger Waters é um dos grandes ativistas do BDS

Ainda que exista um grande debate em torno da relação entre cultura e política, Charbel afirma que o diálogo entre os dois campos é fundamental. “O boicote cultural é uma ferramenta estratégica que se revelou muito mais eficaz do que qualquer outra medida para pressionar Israel a respeitar o direito internacional. Não se trata de boicotar indivíduos, mas de não se vincular institucionalmente com o regime israelense e seus esforços de propaganda”, explica. “Nesse sentido, a recusa de artistas internacionais a fazer shows em Israel tem muito mais impacto sobre o apartheid israelense do que qualquer declaração crítica que pudessem fazer, ou do que qualquer apelo vão e genérico por ‘paz’ ou ‘justiça’”, completa.

Offer Neiman, israelense e um dos ativistas do movimento “Boycott from Within”, uma associação entre judeus e árabes israelenses adepta ao BDS no país, explica o intuito do boicote: “As nossas demandas são: acabar com a ocupação e colonização de todas as terras árabes e a desmontagem do muro; reconhecer os direitos fundamentais dos cidadãos árabes-palestinos de Israel para plena igualdade e respeitar, proteger e promover o direito ao retorno dos palestinos refugiados à suas casas e propriedades estipuladas na resolução da ONU 194”.

Para Neiman, a necessidade do boicote cultural alavanca discussões sobre o cenário social e político no país de ocupação das terras palestinas, uma vez que se compreende que a apresentação de artistas internacionais no país reforça a boa imagem de Israel. ”É uma chance para falar sobre direitos humanos aqui. Os israelenses tentam muito não ver e nem discutir as questões da Palestina. Com o boicote cultural, fica difícil que se esquivem desse debate”, avalia.

Uma palavra proibida?

Apesar do movimento BDS já ter reconhecimento internacional e diversos artistas serem adeptos à causa, em Israel a situação é um pouco diferente. Como explica Neiman, falar sobre o movimento ainda não é ainda proibido pela lei penal, apenas pela lei civil. “Você não será preso por apoiar o movimento, mas alguém que foi prejudicado pelo BDS pode te processar por compensação”, explica. O debate acerca do movimento tem crescido no país e o governo está em processo de modificar a legislação.

“Israel gostaria de aumentar as multas estipuladas pela lei, tornar mais fácil processar nós, ativistas do movimento, deixando cair a atual necessidade de provar que a pessoa que nos processou perdeu dinheiro por conta da nossa chamada pelo BDS”, conta Neiman. “Além disso, há também alguns parlamentares que gostariam de levar o BDS para uma infração punível pelo código penal, algo como traição”, completa o israelense.

E o que o Brasil tem a ver com isso?

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Reprodução

Em 2015, Caetano Veloso e Gilberto Gil se apresentaram em Israel e levantaram o debate

Em 2014, a discussão emergiu no Brasil quando, a partir de uma pressão realizada por artistas de diversos lugares do mundo, a Bienal de Arte de São Paulo rompeu com o patrocínio do Estado de Israel. No ano seguinte, foi a vez do assunto tomar conta da música com a ida de Caetano Veloso e Gilberto Gil para Tel Aviv com o intuito de abraçar a comunidade latina e brasileira do país. Apesar das polêmicas, o show aconteceu e, na época, Caetano ainda anunciou que preferia o diálogo ao boicote. Mais tarde, entretanto, o músico escreveu um artigo na Folha de S. Paulo anunciando que não voltaria mais ao país. Com o título de “Visitar Israel para não voltar mais a Israel”, o músico escreveu que “constato, de longe, que a paz que eu julgava ver dentro de Tel Aviv —e que começava a pensar ser a paz que eu não quero— era, como já se sabia o tempo todo, frágil, superficial e ilusória”.

Para Pedro Charbel, as discussões diplomáticas e negociações na região não transformou a realidade do povo palestino, sendo o BDS a forma que encontraram para lidar com o conflito no país. “Hoje são mais de 5 milhões de palestinos refugiados pelo mundo, assentamentos ilegais e uma ocupação militar que só crescem na Cisjordânia, Gaza permanecendo desumanamente sitiada, os palestinos dentro de Israel vivendo sob leis racistas, e a anexação ilegal de Jerusalém cada vez mais consumada...”, explica. “Diante disso o BDS é hoje a esperança do povo palestino por mudança e, portanto, é a aposta responsável, e forma de solidariedade concreta, de defensores dos direitos humanos em todo o mundo”, completa.

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