“A arte tem uma capacidade de ver à frente”. É assim que a socióloga e professora da Universidade de São Paulo, Maria Arminda do Nascimento Arruda compreende a relação desse universo com o ser humano. Diante de diversas polêmicas que ascenderam nos últimos meses envolvendo exposições, como “La Bête” no MAM ou o “ QueerMuseu ” em Porto Alegre, onde  as obras foram acusadas de promover a pedofilia, zoofilia e o desrespeito religioso, as discussões acerca da liberdade artística e de expressão reascenderam no País, fazendo com que discursos a respeito da censura ascendessem no debate público.

A socióloga Maria Arminda conversou com o iG sobre a arte e o seu contexto atual
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A socióloga Maria Arminda conversou com o iG sobre a arte e o seu contexto atual

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Mas afinal, o que é a arte ? Pode ela ser criminosa? E o que ela representa para a sociedade? Diante desse contexto, Maria Arminda conversou com o iG Gente para falar um pouquinho sobre as suas percepções do novo momento da arte no país e como podemos compreender o cenário que está cada vez mais complexo. Confira a entrevista:

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Muitos artistas atualmente têm reivindicado uma possível volta da censura, depois das polêmicas envolvendo as exposições QueerMuseu ou a do MAM. Nesse contexto, como podemos explicar esse “ataque”, vamos dizer assim, à expressão artística atualmente?

Na verdade a censura é sempre uma coisa condenável sobretudo a censura à arte porque na verdade o que é a arte, a arte é a capacidade de expressar virtualidades futuras e quando é censurada uma expressão artística você está não só coibindo a liberdade da criação, mas você está pondo em questão a possibilidade, a condição de apontar para outras portas, para outras janelas e outras questões do mundo no futuro. Então isso é uma medida na minha opinião muito autoritária e que do ponto de vista da arte não cabe. Agora, a arte é criação. Coisa diversa é dizer ‘olha, como crianças foram lá porque foram levadas pelos pais, os pais tem que ser proibidos’, que isso? Esse é um julgamento individual, e de cada casal, de cada pai, de cada mãe. Agora, censura na arte é sempre altamente condenável. 

Como podemos perceber que esses burburinhos sobre censura tenham tido o seu estopim justamente agora? Como podemos compreender essa explosão da relação do público com a arte atualmente?

O Brasil vive um momento altamente regressivo em relação a todas as liberdades. A maior expressão dessa regressão não só foi o que aconteceu do ponto de vista do abalo aos princípios constitucionais, quer dizer, da democracia, que são as eleições, você pode não gostar de um dirigente, pode considerar um dirigente incompetente, isso tudo é legítimo, eu própria não achava a presidente Dilma uma pessoa muito habilitada, mas coisa diferente é você atentar contra as instituições. Quando houve o impeachment que no fundo foi um golpe parlamentar que fazem em questão é atentar contra decisões da sociedade que foram decisões que resultaram das eleições. De lá pra cá nós começamos a caminhar cada vez mais no sentido do obscurantismo. Quer ver? Censurar a arte, projetos de lei contra abortos inclusive em situações de estupro, ao mesmo tempo conduções coercitivas para o congresso. O que é isso? Estamos vivendo o que? E um presidente que fez um discurso dizendo que a sociedade brasileira legitima o autoritarismo porque ela é autoritária. Quem atentou com a democracia não foi a sociedade no seu conjunto, então o Brasil vive um momento terrível na sua história que eu estou chamando de momento regressivo que é anti-direitos, anti-liberdade, anti-instituições democráticas, nós temos que tomar cuidado, viu? E isso aparece na censura artística. 

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Santander Cultural/Divulgação

Visão. Obra de Bia Leite na mostra “Queermuseu” esteve no centro da polêmica sobre as artes

A arte seria um dos primeiros pilares a serem atingidos nesse contexto?

A arte tem como princípio a recusa do existente. Portanto é transgressão. Então são projetos contra a transgressão, contra a rebeldia. Agora, toda a sociedade, se for democrática, tem que conviver com a diversidade, a diferença, agasalhar as propostas divergentes se não democracia. Não adianta falar sobre democracia no Brasil com aquele congresso. E com essas pautas totalmente que tinham sido alijadas do nosso universo desde a democratização, sobretudo com a Constituição de 1988. Nós estamos voltando a todos os fundamentalismos, intolerâncias, veio aqui uma grande crítica de arte, a Judith Butler que foi agredida no aeroporto. E são brutos que representam visões obscurantistas.

Então, é preciso, nós estamos caminhando por um momento complicadíssimo da sociedade brasileira e não se expressa só em relação a censura à arte, mas se expressa em vários campos, aos direitos, à reforma trabalhista, à reforma da previdência, eles não mexem nos privilégios, mas mexem naqueles que tem salários baixos. Ao mesmo tempo aos direitos de gênero, olha qualquer mulher tem que ficar revoltada com isso de o aborto em condição de estupro ser considerado crime. O corpo da mulher é o que? Objeto? Não importa de quem seja? E isso é o Brasil de hoje, do Governo Temer. 

Como podemos pensar a produção intelectual e artística atualmente? Você acredita que ela tenha atingindo outro patamar para provocar essas reações de outros grupos ou essa reação está vinculada somente ao contexto social que estamos vivendo? 

Isso quer dizer, o país chegou a um momento complicadíssimo da sua história, sobretudo o Brasil teve elites dirigentes esclarecidas, hoje nós temos um grupo de pessoas que só pensam nos próprios interesses e são obscurantistas, é essa a minha visão. 

Então a produção artística provocadora sempre esteve presente e foi a elite que se transformou?

Essa elite está pensando somente nas próprias questões. Não é elite nada, na verdade. Estou lembrando da bela entrevista que o economista Luiz Gonzaga deu a um jornal: “o Brasil não tem elite, tem gente rica”, que é outra coisa. Elite são pessoas comprometidas com o destino do país e da nação, as pessoas não estão comprometidas com isso. Estão querendo logo sair do Brasil, viver em Miami, e ganhar dinheiro. Elite são elites dirigentes que pensam a nação. A Constituição de 1988 representou isso, a chamada constituição cidadã, que Ulisses Guimarães presidiu, ela pensava um outro Brasil, ali você tinha uma representação de elite política. Agora não. Agora cada um buscando o seu próprio interesse, nós chegamos a esse fundo do poço. Não tem elite, tem raras exceções que temos líderes de um compromisso público superior. O Brasil tem gente rica e cada dia os ricos são mais ricos e os pobres mais pobres. 

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A novela chegou a sofrer campanhas de boicote por conta do beijo lésbico entre Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg

Em algumas novelas, como por exemplo a “Babilônia” em 2015, um beijo lésbico causou bastante polêmica e muitas pessoas chegaram a querer boicotar a produção da Globo. Podemos enxergar aquele momento como um anúncio do que viria mais tarde? De que forma? 

A lógica destes movimentos altamente conservadores e regressistas tem crescido no Brasil. Em 2015 isso foi uma manifestação, agora nós chegamos dentro do Congresso e o Congresso Brasileiro, salvo honrosas exceções, é um Congresso que é totalmente divergente da sociedade. As pautas são as pautas deles e mais que isso, e dentro do congresso tem bandeiras inimagináveis do ponto de vista da visão totalitária da realidade do Brasil. O país se desmanchou, perdeu o horizonte.

Mas esse processo você entende que é um processo de longa data que teve uma maior abertura agora?

Nunca quiseram se expor e as coisas não acontecem de uma hora para outra, mas isso tem a ver com o fato de ter resistências no âmbito do Estado à isso, e das instituições públicas, você tem uma maneira de enfrentar, mas se as instituições públicas são piores que os movimentos conservadores, o que você espera? 

Diante das polêmicas, muito se falou sobre como que a liberdade de expressão pode dar margem a situações que podem ser consideradas criminosas. Como você avalia essa preposição?

A liberdade de expressão é um direito. Os cidadãos tem capacidade de julgar livremente e fazer ou não certas coisas e assumir essas consequências. 

Pensando no contexto do Brasil, que teve uma ditadura e muita repressão, inclusive no campo das artes, você acha que isso que está acontecendo é um reflexo daquela época?

Olha, houve um processo de mudança desde a ditadura se a gente pensa como marco, as instituições da ditadura já estavam em questões, mas se a gente pensa em 1985, fim do governo Figueiredo, até lá o Brasil se democratizou muito, o que aconteceu é que neste período o chamado Período Democrático o Brasil também fez um movimento que foi de incorporação social, são essas forças conservadoras que não concordam com isso. É um País que é muito avesso à abertura democrática e inclusão social. Mas nesse processo você tinha governantes que representavam forças avançadas, agora os governantes brasileiros representam o que é pior. Então você está perdido porque não tem outra tendência.

Na arte é gravíssimo porque a arte é a liberdade de criação, adianta eu falar que eu sou contra a cultura queer? Primeiro porque é uma loucura, porque as pessoas têm direitos, e outra porque isso é parte do mundo contemporâneo.

Como a sociologia explica a relação do ser humano com a arte? Em especial no Brasil? Como a arte se relaciona com a sociedade?

É preciso lembrar que Flaubert, quando escreveu "Madame Bovary" foi processado e hoje é uma das obras, um dos romances mais celebrados na literatura do Ocidente. Isso quer dizer o que, a arte tem uma capacidade de ver à frente. E como o Brasil vive um momento muito ruim, então tudo o que aparece que possa parecer avançado é considerado imoral. Mas qual é o principio da moral? O que é imoral? Eu posso dizer que tem certas coisas que são imorais, que são direitos centrais, o direito à vida, o direito à liberdade, o direito a não ser torturado, por exemplo, são princípios de uma moral, que são princípios gerais humanos. Agora liberdade de expressão, eu não sei se eu levaria meu filho pequeno para uma exposição dessa, mas eu tenho que ter direito de julgar. Pode até ser que levasse, mas eu que tenho que ter direito de julgar. 

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Reprodução/Twitter

O ministro da cultura Sérgio Sá anunciou novas medidas para a Lei Rouanet em novembro, depois de polêmicas sobre possíveis mudanças na lei

Como você avalia que o espaço do País para os novos artistas esteja sendo construído atualmente diante desse cenário? 

Bom, é muito complicado porque as pessoas podem começar a praticar a auto-censura, que é a pior forma de censura, que é quando você introjeta a censura. E não tem coragem de se expressar porque pode ser censurado, pode ser processado, pode ser levado a depoimentos coercitivos, etc. Como que faz diante disso? Eu tenho uma revolta quando eu vejo a arte sendo proibida, a arte só existe sob a condição de liberdade. Esta coisa de você ficar censurando as pessoas, sejam quais posições forem, você está agredindo publicamente. 

O caso da Lei Rounaet por exemplo, você considera que seja uma forma do governo promover essa auto-censura?

Com certeza. Porque você vai auto-censurar o seu projeto porque não vai conseguir financiar. Já imaginou o que é isso? Auto-censura é mais nociva que a censura explícita, porque a censura explícita você enfrenta.

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