Enquanto a democracia retornava ao Brasil, do outro lado do oceano, um grupo intitulado “Mustache Brothers” desafiou o governo militar da Birmânia utilizando a maior arma que tinham em suas mãos: o humor. Os irmãos, de maneira clandestina, promoviam shows de comédia com piadas que atacavam diretamente o seu governo, que utilizava da censura uma forma de controle da nação entre 1988 e 2011. O ato de resistência, entretanto, fez com que um dos irmãos chegasse até mesmo a ficar na prisão durante sete anos, por ter ridicularizado o próprio Estado por meio da arte . Mas não é necessário cruzar o oceano para ver que a potência do humor pode transcender o próprio riso.

O humor, assim como a arte, tem caráter provocativo e pode ele estar sujeito também à censura?
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O humor, assim como a arte, tem caráter provocativo e pode ele estar sujeito também à censura?

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Desde sempre, o humor se faz como uma forte ferramenta de crítica social que pode agradar a uns, mas também desagradar a outros. Segundo o comediante de Stand Up Robson Nunes, deixar de misturar política com o riso é uma tarefa impossível. “Fazemos piadas com o cotidiano, então a política interfere diretamente dentro de todos nós”, comentou em entrevista ao portal iG . Há anos no ramo da comédia, Nunes realiza diversos espetáculos de stand up comedy, uma performance que migrou dos Estados Unidos para o Brasil há poucos anos mas, como afirma o artista, já se consolidou por aqui.

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Com o retorno das discussões a após as recentes polêmicas nas exposições “QueerMuseu” em Porto Alegre e “La Bête” no MAM em São Paulo, a ideia da censura reascendeu no universo da arte, algo que, para Nunes, é preocupante. “Eu acho que você tem o direito de se expressar e a arte causa isso. Não dá para cair no ‘isso é arte ou isso não é’. Quem tem essa sabedoria suprema? Nós temos espaço para todo mundo se expressar”, opina o comediante. “Temos um passado muito recente de liberdade de expressão que é uma conquista da qual não podemos abrir mão”, completa, fazendo referência à ditadura militar brasileira que acabou em 1985.

Naquela época, não eram apenas os artistas plásticos, cênicos ou musicais que sofriam sanções do governo, mas também os próprios comediantes. Um caso é a de Maria Teresa Fróes, que na década de 1970 foi várias vezes censurada por conta de alguns dos seus personagens que produziam fortes críticas sociais. “Censurar seja qualquer tipo de coisa é um passo pra trás”, opina Nunes. Entretanto, nesse universo da comédia muitas controversas ressurgem vez ou outra na mídia, colocando em evidência piadas que não necessariamente rompem com paradigmas, mas reforçam discursos já existentes na sociedade que são frequentemente questionados.

“O comediante é muito atraído para falar das fronteiras, o que pode ser dito e não pode ser dito. Então, ele tem que andar nessa corda bamba”, comenta Gustavo Suzuki, um dos fundadores do grupo de Stand Up Comedy Sr. Bumbum. Ao lado de Hell Ravani e Vitor Brandt o trio de roteiristas de televisão se uniu com uma nova proposta para o stand up comedy. “A comedia no Brasil é tomada por um estilo e um jeito de pensar. E a gente pensava diferente”, conta.

Discurso de ódio?

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Rafinha Bastos chegou a pagar uma indenização milionária para a cantora Wanessa Camargo

Um dos casos mais icônicos no mundo da comédia foi a polêmica envolvendo Rafinha Bastos e a cantora Wanessa Camargo. Em 2011, quando estava ainda no programa da Band “CQC”, o comediante afirmou que “comeria ela e o bebê” logo após uma matéria mostrar a gravidez da cantora. O comentário rendeu ao humorista um processo de indenização movido pela artista no mesmo ano. As piadas problemáticas, entretanto, não pararam por aí. Em 2013 foi a vez de Danilo Gentili ficar sob os holofotes. Na ocasião, o humorista comparou uma doadora de leite pernambucana com um ator pornô. “Em termos de doação de leite, ela está quase alcançando o Kid Bengala”, disse.

Os comentários ascenderam um debate dentro do humor de forma polarizada: de um lado, os que defendiam que as alegações eram reflexo de um discurso de ódio e, do outro, aqueles que acreditavam que coibir esse discurso poderia ser uma forma de censura. Para Nunes, no mundo da comédia, a reação de queixa do público é algo recorrente e esperado. “Quando você aborda assunto polêmico, tem que estar pronto para reação. Alguém se sentiu ofendido por essa ação e quer protestar. Eu acho que uma vez que você faz um texto polêmico você tem que estar pronto para colher críticas positivas e negativas também”, opina.

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Robson Nunes é idealizador do espetáculo "AfroBege", que traz à tona o racismo no humor

O comediante ainda ressalta: o limite para fazer uma piada é a própria graça. “Se você faz uma piada que só é critica, não tem humor nem graça naquilo então eu acho que você errou. A piada tem o seu perdão”, comenta. Nunes revela que, atualmente, é muito comum que o público consiga chegar aos comediantes e contestar aquilo que é falado. Além disso, o humorista ressalta a importância do artista de saber o que está dizendo, para não cair em contradição. “No meu espetáculo abordo muito a questão racial de uma forma divertida, porque tratando de um tema tenso que é o preconceito eu busco coloca-lo de uma maneira engraçada e o legal é que a pessoa ria, mas se ela conseguir refletir sobre aquilo, aí são dois golaços”, explica o humorista, idealizador do AfroBege.

Para Gustavo Suzuki, o tema é complexo e estabelecer regras diante do humor pode ser espinhoso. “Eu acho que por um lado é difícil falar que existe um limite de liberdade de expressão, mas por outro lado existem coisas que não estão dentro do escopo que a gente considera certo de se dizer. Existe um limite do humor que tem a ver com o que a sociedade quer ouvir e o que você quer dizer”, completa. Apesar das zonas acinzentadas que o humorista pode percorrer, Suzuki vê com bons olhos esse percurso que tem que correr, ressaltando que é necessário que se discuta sobre o que está em torno do que ele chama de corda bamba. “O comediante quando erra, quando cai pro outro lado, atravessou uma linha e quebrou a regra do jogo. Se a sociedade como um todo não gostou do que você falou, é liberdade de expressão da sociedade dizer isso também, ela pode falar de volta. Esse é jogo democrático”, opina.

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Gustavo Suzuki é um dos idealizadores do Sr. Bumbum, que traz outra proposta para o humor

Diante de situações onde a censura torna-se uma possível ferramenta para “correção política” dos humoristas, Suzuki afirma: “Não queremos nem discurso de ódio e nem censura. O melhor remédio é tentar entender o que as coisas significam, melhorar seu discurso, seu texto e fazer aquilo de um jeito que representa o que você acredita”.

Censura no humor, censura na arte

Apesar de o humor estar distanciado dos holofotes nos debates da censura no mundo das artes, suas polêmicas permeiam os acontecimentos recentes no país. Para o jornalista e cronista João Pereira Coutinho, “se os humoristas se demitirem de remar contra a maré politicamente correta, eles não servem para mais nada”. Segundo ele, que é autor de livros como “Conservadorismo” e “As ideias conservadoras explicadas a revolucionários e reacionários”, “expressões artísticas que não agradam a alguém é, em resumo, a história da arte desde a sua origem. A única forma de não ofendermos ninguém é pela promoção do silêncio e do vazio”. Para ele, a relação entre a produção artística que seja relacionada a um discurso de ódio deve ser tratada como crimes, mas não por meio da censura.

“Esse limite é estabelecido pela lei e pelos tribunais, não pelas ‘massas’, pelas ‘redes sociais’ e por outras manifestações histéricas. Se alguém se sente pessoalmente ofendido, pode recorrer para a justiça”, opina o jornalista. “Coisa diferente são grupos que falam em nome de coletividades e que assumem uma única personalidade. Essa é a receita para o totalitarismo”, completa.

Já para a também jornalista e crítica de arte Lisette Lagnado, a democracia e a censura não casam. “Falar de ‘correção política’ já é sinal de autoritarismo. A sociedade brasileira está vivendo uma atmosfera de rara truculência. Esse furor é amplificado por canais de comunicação que deveriam apresentar análises em vez de repercutir opiniões isoladas e sem fundamento”, opina. “O que falta é educação, orientação, diálogo, faixas etárias indicativas. Um dos papéis das instituições culturais consiste em ter habilidade para transmitir conteúdos considerados mais sensíveis para determinados grupos de visitantes”, completa, fazendo referência às polêmicas nos museus do país.

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Mural de Pablo Picasso

Assim como o humor, a arte sempre teve um tom provocador, que a jornalista recorda. “Ninguém coloca em questão que o quadro Guernica de Pablo Picasso foi uma denúncia contra os regimes fascistas. A intervenção que eu vejo da vida política brasileira na arte é outra”, comenta a crítica de arte questionando a falta de ética do governo brasileiro. Para ela, faz parte da liberdade de expressão não só expor uma obra, como também refutar sua qualidade e pertinência, mas que o cenário atual não se trata sobre essa dialética. “É uma hipocrisia alardear falsas polêmicas em torno da arte quando sabemos que o acesso à violência pela internet está fora do controle dos pais. A censura e o cerceamento à liberdade são dispositivos que acabam gerando mais preconceito”, comenta.

Questionado sobre a maneira de como enfrentar o atual momento brasileiro, Coutinho é categórico: “O problema do Brasil, e do mundo, foi diagnosticado por Nelson Rodrigues há muitos anos. Dizia ele que, antigamente, ninguém escutava um idiota - e o idiota, coitado, sabia qual era o seu lugar. Acontece que, um dia, o idiota subiu num caixote e começou a discursar. Outros idiotas saíram da clandestinidade e começaram também a pregar”, conta. “O mundo está entregue a idiotas, cheios de ‘som e fúria’. A solução é ignorar os idiotas - e tratá-los à gargalhada”, finaliza o jornalista.

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