Em 1991 a Lei Federal de incentivo à cultura, mais conhecida como Lei Rouanet, entrou em vigor no país criada pelo então ministro, Sério Paulo Rouanet. Na época, o ex-presidente Fernando Collor de Mello sancionou a proposta do Ministério da Cultura que tem como intuito a promoção, proteção e valorização das expressões culturais nacionais. O objetivo do projeto era, além de fomentar um cenário cultural no país, também educar empresas e cidadãos a investirem na cultura . Com quase trinta anos em vigor, este ano a Lei Rouanet ficou sob os holofotes novamente – mas desta vez cercada por uma série de polêmicas.
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Depois da ascensão de Michel Temer (PMDB) em 2016 no governo federal, o Ministério da Cultura, responsável pela análise e autorização a capacitação de projetos inscritos por meio da Lei Rouanet , entrou na pasta de cortes do governo, que cogitou unifica-la ao Ministério da Educação, com o intuito de diminuir os gastos em tempos de crise econômica. A decisão foi logo criticada pela população gerando uma série de protestos pelo país, o que fez com que o presidente voltasse atrás.
Entretanto, a relação do governo com a classe artística de lá pra cá ficou cada vez mais tensa. João Batista de Andrade, que chegou a assumir o Ministério da Cultura, cargo que possuiu uma grande rotatividade durante o ano, pediu demissão em junho e disse à Folha de S.Paulo que o trabalho estava insustentável. “Era um ministério que já estava deficiente. O Fundo Nacional de Cultura, que já teve R$ 500 milhões na época áurea, hoje tem zero de recurso. É um ministério inviável, tratado de forma a inviabilizá-lo ainda mais”, criticou.
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O clima de tensão culminou em setembro deste ano, após duas exposições, a QueerMuseu, em Porto Alegre e a performance “La Bête” ficarem sob os holofotes da mídia. A primeira, que foi inclusive realizada através de recursos obtidos por meio da Lei Rouanet, foi fechada depois de uma série de protestos encabeçados principalmente pelo Movimento Brasil Livre (MBL) acusando as obras de apologia à pedofilia, zoofilia e insulto religioso. A segunda, que aconteceu logo em seguida, causou controversa depois de um vídeo circular na internet de uma criança encostando no corpo nu do artista, que foi acusado de incentivo à pedofilia.
Nesse contexto, foi divulgado pela coluna de Ancelmo Gois no jornal O Globo que o atual ministro do Ministério da Cultura, Sérgio Sá, teria incluído um artigo na minuta da regulamentação da Lei Rouanet que vetaria a apresentação de propostas que “vilipendiem a fé religiosa, promovam a sexualização precoce de crianças e adolescentes ou façam apologia a crimes ou atividades criminosas”. A notícia correu pelo país causando diversas manifestações, tanto daqueles que apoiaram a decisão acreditando ser necessária diante dos então recentes acontecimentos, quanto dos artistas que acusaram o governo de promover a censura com a proposta.
Sob a mira da imprensa, Sá negou que teria proposto alterações na lei desta natureza e ainda afirmou que estaria planejando uma campanha de valorização da liberdade de expressão. Para Carlos Paiva, ex-secretário da Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura (Sefic), a controvérsia com uma das principais leis de fomento a cultura no Brasil está mais embaixo. “Estas polêmicas não têm relação com a forma de apoio às artes, mas ao conteúdo questionador que o fazer artístico pode exercer”, comentou em entrevista ao iG Gente . Para ele, estes movimentos criam falsas polêmicas cujo objetivo é atingir a classe artística, que desde o princípio se opôs ao atual governo presidencial. “A pauta é deslegitimar a classe artística”, completa.
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O secretário, que atuou entre 2015 a 2016 no cargo, ainda critica o anseio de se realizar alguma mudança na Lei Rouanet desta natureza, ressaltando que a lógica proposta abre margem para outras previsões legais a serem incorporadas que não fazem sentido nesta legislação. “O regramento jurídico do fomento à cultura deve tratar das questões do seu campo, não de qualquer outro tema que por ventura tenha interseção”, afirma. “O irônico é que os que advogam esta alteração não atuam onde estes crimes realmente acontecem Brasil afora: no reiterado ataque a templos de religiões de matriz africana, estas sim ações de intolerância religiosa com fundo racista”, argumenta.
Mas a Lei Rouanet precisa de mudanças?
Não é de hoje que a Lei Rouanet está sob os holofotes da sociedade e do governo para que seja alvo de mudanças. Ainda que a discussão atualmente tente se concentrar nos projetos que devem ou não serem captados no país, a realidade é a de que nem todos artistas conseguem alavancar suas ideias. Apesar de buscar o fomento da diversidade cultural brasileira, a lei pensada por meio do incentivo fiscal acaba definindo não só a região onde os projetos terão mais possibilidades de emergir como também quem serão os seus patrocinadores. “Toda a captação dos proponentes [pessoa física ou jurídica que apresenta um projeto] dos dezesseis estados das regiões Norte e o Nordeste nos vinte e dois primeiros anos da Rouanet (1993 a 2015) equivale à captação do Sudeste apenas em 2015. Uma exclusão prolongada em nada condizente com a riqueza e potência cultural daquelas regiões”, explica Carlos Paiva.
Ainda, de acordo com o ex-secretário, é comum ver que no Rio de Janeiro e em São Paulo, eixo econômico onde há uma grande concentração das empresas nacionais e multinacionais, os principais museus possuam algum apoio da Lei Rouanet. “Mas ao olhar o Brasil como um todo, menos de 3% dos 3.025 museus cadastrados pelo IBRAM conseguem algum tipo de captação de recursos com o incentivo fiscal federal”, comenta.
Em 2010 surgiu no Congresso Nacional uma nova proposta que busca resolver essas questões, intitulada como ProCultura. A intenção é que ela substitua a Lei Rouanet e estabeleça a desconcentração dos recursos captados via renúncia fiscal, como por exemplo, destinando no mínimo 10% do Fundo Nacional da Cultura (FNC) para cada região do país, além de estabelecer um incentivo sem prazo de validade. Entretanto, como alerta Carlos Paiva, a proposta está desde então parada. “Esta redução da agenda pública leva o debate para o estágio em que se encontrava no final dos anos 90, em que o incentivo fiscal era considerado o fundamento das políticas de fomento”, opina.
Receitas de sucesso
Apesar de uma das principais leis de incentivo a cultura estar sendo colocada em xeque na sociedade brasileira, há outros projetos estaduais e municipais que se apresentam como casos de sucesso, como é o ICMS Cultural de Minas Gerais, que incluiu na legislação que a existência de políticas e investimentos realizados na preservação do patrimônio cultural é uma das variáveis que pode aumentar ou diminuir a cota municipal, e o Fundo de Cultura da Bahia com implantação de linhas de fomento plurianuais para atividades com um caráter mais permanente. “Parte de um sistema de fomento eficiente é não ser excessivamente complexo – isso limita a participação, dificulta a gestão e aumenta o risco de colocar produtores e gestores públicos no limite da ilegalidade por falta de observância de detalhes criada pelo próprio MinC”, argumenta Carlos Paiva.
Além disso, há também o Vale-Cultura, o primeiro mecanismo voltado ao consumo e às práticas culturais. Apesar de inovador, ainda está em fase de maturação. “Quando alcançar 10% de todos os trabalhadores de carteira assinada do Brasil, que caracteriza o atual público do Vale-Cultura, mobilizará mais de R$ 2 bilhões por ano para consumo em produtos e serviços culturais, valor equivalente a 150% dos recursos atualmente mobilizados pelo incentivo fiscal da Lei Rouanet”, conta Paiva. Entretanto, as ações de promoção do programa foram suspensas com o novo governo.
Pode falar!
Ainda que seja acusado de promover a censura, o Ministério da Cultura está procurando reverter a imagem que está sendo criada diante da instituição com a promessa de realizar uma campanha buscando promover a liberdade de expressão. “Pela lei, o Ministério da Cultura tem obrigação de tornar público seus atos e projetos e, neste sentido, é indicado que o ministro e sua assessoria de comunicação foquem esforços a fim de esclarecer suas políticas culturais para a população, principalmente para os agentes culturais e artistas”, comenta o publicitário Sérgio Bairrada. “No entanto, ao se fazer uma campanha publicitária sobre a liberdade de expressão, ela deve se enquadrar como utilidade pública, com o objetivo claro de informar, educar, orientar, mobilizar, prevenir ou convocar a população para comportamentos que gerem benefícios individuais ou coletivos”, completa o profissional.
Ainda, segundo o publicitário, o Ministério da Cultura, assim como tantos outros – exceto pelo do Turismo – só podem realizar publicidade de utilidade pública, portanto, uma campanha neste sentido teria que vir com o poder de informar o público e “convocar a população para alguma ação de interesse público”. “Essa diversidade é importante na construção da nossa identidade cultural, que é muito dinâmica e está sempre em evolução. Reprimir a liberdade de expressão é, de certa forma, negar a nossa própria diversidade cultural”, comenta.
Para Carlos Paiva, a repressão das artes sinalizam problemas políticos maiores. “As artes são sempre sinais de vitalidade de um país, em especial de sua democracia. Num momento em que a democracia é ameaçada, é natural que as tensões com o setor artístico cresçam”, comenta. “Importante que a população veja que, depois dos artistas, outros segmentos também passam a ser perseguidos, e a erosão democrática só se agrava”, completa.
O Ministério da Cultura foi consultado para a realização desta reportagem, mas a assessoria afirmou que a instituição não faria nenhuma manifestação sobre a Lei Rouanet até o anúncio oficial das mudanças da instrução normativa da lei. A previsão é de que elas sejam divulgadas na próxima quinta-feira (30) pelo ministro em São Paulo. A respeito da campanha de comunicação em prol da liberdade de expressão, o Ministério da Cultura recusou-se manifestar sobre o assunto antes da divulgação das mudanças da lei, alegando apenas que a proposta está sendo pensada para o próximo ano.