A estreia de “Malhação: Viva a Diferença” deu o que falar em maio deste ano. A nova temporada da série escrita por Cao Hamburger e dirigida por Paulo Silvestrini trouxe para as telinhas da Rede Globo uma nova perspectiva para a atração que já tem uma longa trajetória na emissora. Entre as diversas personagens que enriquecem a trama está Dóris , a diretora da escola Cora Coralina, que é interpretada pela atriz Ana Flávia Cavalcanti . Sua personagem não poderia vir em melhor hora: mulher, negra e em cargo de chefia, Dóris se impõe como uma figura que tem muito a expressar.
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“A Dóris é uma personagem muito integra, com valores determinados e eu costumo dizer que estamos sentindo um momento bem louco no Brasil e ela traz um acesso à esperança”, comenta Ana Flávia Cavalcanti em entrevista ao iG Gente . “É ótimo assistir novamente à ‘ Malhação ’, uma novela que existe para jovens, com uma postura tão bacana, que respeita a diferença do outro e realmente deseja um País mais igualitário. Surpreendo-me a cada capitulo e vou vendo que a repercussão é maior que eu imaginava”, completa a atriz.
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Dando vida ao seu segundo papel na televisão – o primeiro foi Carola em “Além do Tempo” – Ana Flávia revela que Dóris está trazendo um grande aprendizado para ela, que já se considerava uma mulher politizada. “Acredito que estou aprendendo a olhar mais para ‘a coisa pública’, para o meu País”, conta. “Para gravar as cenas, eu preciso pesquisar muito para o meu trabalho ficar melhor e isso me deixa ligada sobre o que está acontecendo, sobretudo nas escolas públicas”, confessa.
Para além da TV
Essa conexão com a realidade brasileira, por sua vez, faz com que Ana Flávia não hesite em mesclar a arte para falar sobre temas importantes que transcendem os debates articulados em “Malhação”. Uma das suas performances mais notórias é “A Babá Que Quer Passear”, uma intervenção artística em que a atriz entra em um grande carrinho rosa vestida de branco e aguarda pessoas que se interessem em leva-la para passear pelas redondezas.
A ideia veio de um sonho e acabou transformando-se em realidade mais tarde. “Eu uni isso com a minha indignação de como nós nos relacionamos com o emprego doméstico, não só as babás. Aqui no Rio Janeiro eu fico indignada com as babás de branco, sempre negras, cuidando dos filhos de mulheres brancas nas praias, carregando tudo da família, como se fossem mulas”, critica. “Isto está totalmente associado ao período de escravidão que a gente viveu porque a mão de obra mais barata ainda é a negra, então é barato contratar uma empregada doméstica, uma babá desta maneira: que trabalha muito com muitas precariedades da própria vida”, reflete.
Durante as performances, Ana Flávia revela que conseguiu observar muito do comportamento do brasileiro. Estacionando seu carrinho gigante em bairros nobres, a atriz percebe que dificilmente é levada a passear, mas que sua presença incomoda. “A provocação está ali, nem que seja por um instante”, conta, relembrando que já passou por situações em que quase a derrubaram no meio da rua, mas também por outras onde foi possível estabelecer um diálogo aberto e sincero sobre a temática.
“Nós não falamos sobre isso. Discutimos muitas coisas, abrimos várias frentes, mas nunca falamos dessa herança maldita da escravidão de mais de 300 anos que são os empregos domésticos”, comenta. Tendo tido experiências como babá em outros países e como garçonete, Ana Flávia critica a postura de como o Brasil ainda lida com os ofícios. “Na Europa, a pessoa que cuida da sua casa tem uma remuneração mediana, porém justa. Consegue ter uma vida digna, consumir o que o empregador consome e fazer uma viagem por ano. Aqui, se você falar que faz faxina ou trabalha na cozinha de bar em certas ocasiões é considerado subemprego por conta das condições de trabalho, remuneração e tratamento”, conta.
A intervenção, por sua vez, rendeu muitos frutos para o debate acerca do tema. Encabeçando o projeto “Serviçal”, a atriz revela que após a performance de “A Babá Que Quer Passear” ela se dirige a um espaço multiuso para contar suas experiências enquanto negra onde também convida outros negros a exporem suas vivências e abrirem um diálogo com o público. “Essa interação que é importante e cada um vai embora transformado um pouquinho pelo outro. Não é todo mundo que tem empatia previa, mas quero provocar”, conta.
Um novo futuro
Ainda que Ana Flávia e a sua personagem de “Malhação” não tenham muito em comum, há uma característica que unem ambas as mulheres: a determinação. Diante de um cenário em que a indústria do entretenimento este ano acendeu debates extensos sobre abuso sexual e racismo nos bastidores, a atriz é categórica sobre o momento. “Eu não deixo passar nada não”, conta. “Eu vejo uma mudança. Está tendo uma primavera feminista importante, mas ainda está longe do ideal. Na prática, temos muito o que fazer, mas estamos em um momento de levantar o tapete, ver o que tem por baixo e tirar essa sujeita, começando com as denuncias”, conta.
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No início do ano, a Rede Globo ficou sob os holofotes depois do caso de assédio sexual envolvendo o ator José Mayer com a figurinista Su Tonani, que expôs sua experiência na internet. “O caso dela realmente transformou o lugar. Estava conversando com uma amiga que estava em um set com a Su e um cara disse que não era para mexer com ela, porque ela virou uma figura forte”, conta. “Ela inaugurou um lugar do não, do não admito, de assumir as rédeas do próprio corpo e eu acredito que sim, vai ser difícil hoje uma situação de racismo, de homofobia, ou de assedio sexual passar sem alguém se colocar”, opina, ressaltando o seu anseio de ver mais negros e negras ocupando os espaços no audiovisual.
Projetos paralelos
Dividindo o seu tempo com as gravações de “Malhação” e a sua performance em “A Babá Que Quer Passear”, Ana Flávia busca expandir ainda mais os seus trabalhos. Em maio do próximo ano, ela rodará o seu primeiro filme, intitulado “Rã”, que conta uma história que aconteceu de verdade com ela enquanto vivia nas periferias de Diadema. “É a primeira vez que eu escrevo algo e vira um filme e nele eu vou fazer a minha mãe, então tem esse lugar da minha história de vida, de como eu vejo a minha mãe numa espécie de homenagem também”, conta. Além disso, outro projeto também está na gaveta da atriz: “Estação Bresser”, um curta que conta a história de duas garotas de 18 anos de idade que acabam se envolvendo em uma relação amorosa, mas precisam enfrentar algumas adversidades da vida, como a não aceitação do pai de uma delas. “Eu gosto muito desse projeto e quero rodar já no ano que vem”, conta.