Em determinado momento de “ Uma Espécie de Família ”, já no terceiro ato, o espectador pode se pegar rejeitando todas as ações tomadas pela protagonista, Malena ( Bárbara Lennie ). Ainda assim, é inegável o desejo de torcer por ela e desejar que ela tome a decisão correta. E era exatamente isso que o diretor e roteirista, Diego Lerman, tinha em mente quando começou a trabalhar a história de uma mulher que embarca sozinha com seu gato em uma longa viagem ao norte da Argentina, na fronteira com o Brasil, em busca do sonho de ser mãe.
Leia também: Mostra terá fórum inédito para debater o cinema atual
Para ele, um dos pontos que queria transmitir em seu filme era justamente uma protagonista que fosse uma “anti-heroína”. Uma mulher que, por mais que o espectador torça por ela, não necessariamente cria empatia. Isso porque, ao longo do filme , ela é colocada em diversas situações que vão fazê-la repensar seus limites morais. “Me interessava construir uma personagem com uma indagação moral de certa ambiguidade”, explica Diego Lerman . O diretor está em São Paulo para a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo onde, além de exibir seu filme, é jurado da competição principal. “Uma Espécie de Família” é uma coprodução entre a Campo Cine, produtora de Lerman, e a brasileira Bossa Nova. As duas foram responsáveis por toda a produção do longa, desde captação de recursos até a edição. A parceria entre eles já dura quase uma década e deve se estender por mais dois projetos no futuro: “O Caso Morel”, de Suzana Amaral, e “Planta Permanente”, de Ezequiel Radusky. Além disso, Diego Lerman é o consultor de roteiro para a nova série de Luiz Villaça.
Leia também: 10 filmes imperdíveis da programação da 41ª Mostra de Cinema de São Paulo
Dilemas
Em Missiones, Malena ela irá adotar um bebê recém-nascido que a mãe biológica Marcela (Yanina Avila) entrega para adoção, em um esquema já arranjado pelo médico Costas (Daniel Aráoz), um homem aparentemente amigo e Pernía (interpretada pela brasileira Paula Cohen), que esconde suas ambições por trás de um primeiro contato bastante simpático. No pequeno vilarejo, ela lida com seu primeiro dilema moral quando um parente de Marcela explica que o marido da moça se envolveu em uma espécie de acidente no Brasil e está preso e a família precisa de dinheiro. Agora, se quiser ficar com o bebê, terá que pagar US$ 10 mil. Inicialmente consternada com o suborno, Malena se vê sem saber o que fazer.
Você viu?
A partir daí, muitos outros conflitos são lançados a Male, e ela se vê tomando atitudes cada vez mais questionáveis. Sozinha num lugar isolado e distante, fazendo algo ilegal, Male não tem quem questione suas ações morais. Esse papel fica então com o espectador. Diego explica que a ideia do filme era critica à própria moralidade. Todos temos uma ideia do que é “certo ou errado”, de acordo com a nossa vivência em sociedade mas, quando colocados em uma situação extrema, que normalmente não teríamos que passar, qual alternativa escolheríamos? Que ação tomaríamos? Colocaríamos o “bom” ou “correto” acima de nossos desejos? E é isso que o diretor decide focar. “Me pareceu interessante construir uma personagem que muitas vezes decide ir contra sua “moral” para chegar a seu objetivo. Muitas vezes segue caminhos que não lhe convém”, explica.
Tragédia
Mas, por mais que tome decisões, Male o faz porque está presa a uma situação onde precisa decidir pelo que é considerado “certo” ou “errado”. Em um dos momentos mais emocionantes do filme Marcela diz que não é justo: “vocês ricos tomam todas as decisões”. Mas ela não é a única que se sente impotente – Male também. E é nesse sentido que Diego compara sua história a uma tragédia grega onde todos os caminhos – por mais que os seres humanos acreditem que estão tomando suas decisões – já foram decididos pelos deuses.
Male tem uma jornada durante o filme que, mesmo que a distancie do espectador, gera o oposto do que Diego esperava acontecer: empatia. Conforme conhecemos sua história, mais nos intrigamos com ela e, ainda que discordemos de sua decisão, é possível compreender por que ela faz o que faz. E é quando a própria Male experimenta empatia que o desfecho se torna um pouco mais satisfatório.
Dramas familiares
“Uma Espécie de Família” retrata, por meio da história específica de Male, uma história maior sobre o sistema de adoção argentino. Diego se viu atraído justamente por essa união. A ideia surgiu por meio de uma amiga que passou por uma situação parecida com a de Male (sem a carga dramática do filme, claro) e a partir daí, o diretor visitou a região de Missiones para falar com famílias que tentam adotar crianças, mães que colocam seus filhos para adoção, policiais, médicos, enfermeiros, responsáveis por orfanatos, etc. Ele decidiu, também, utilizar não-atores no filme. O maior exemplo é a própria Yanina, que participou de testes feitos pela produção, que buscou em povoados da região meninas que quisessem atuar e tivessem histórias parecidas com a do filme. Encontraram em Yanina não só a personagem ideal (a menina passa uma verdade dolorosa no papel de Marcela), mas também alguém que dividiu sua experiência em primeira mão com a equipe do filme. Através de Male e Marcela, Diego Lerman e sua parceira no roteiro, María Meira, retratam a pobreza velada, o descaso com parte da população argentina, os orfanatos lotados enquanto famílias esperam por anos na fila da adoção.
Leia também: Soberbo, “Três Anúncios para um Crime” captura América enfurecida da era Trump
O filme de Diego Lerman será exibido no sábado (28), às 19h20, no Frei Caneca; no domingo (29), às 16h20, no Espaço Itaú da Augusta; na segunda (30), às 19h30, no CineSala e, por fim, na terça (31), às 18h, novamente no Frei Caneca.