Na frente das telas, a beleza da sétima arte triunfa com as suas cores, sons, sorrisos e emoções, reafirmando ao público a importância da arte. Nos bastidores, a história é outra. Apesar da indústria do entretenimento trazer ícones para o mundo que muitas vezes transcendem gerações, há uma lógica perversa que comanda o funcionamento desta máquina que movimenta milhões anualmente. Não é à toa, portanto, que casos como o de Harvey Weinstein , produtor de cinema que foi acusado de assediar e estuprar diversas atrizes de Hollywood, vez ou outra surgem na mídia também tomando conta das redes sociais. Entretanto, apesar dessas situações ficarem sob os holofotes da sociedade esporadicamente, este tipo de violência é uma constante que permeia a realidade de diversas profissionais do entretenimento.
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O caso de Harvey Weinstein, por sua vez, chamou atenção pela quantidade de denúncias que recebeu em Hollywood . Em matéria publicada pelos The New York Times e pela The New Yorker , treze atrizes e profissionais do cinema relataram casos de assédio – e até mesmo de estupro – que sofreram enquanto trabalhavam com o produtor. Gwyneth Paltrow, por exemplo, quando estava no inicio da sua carreira, aos 22 anos, recebeu um convite para uma sessão de massagens no quarto do hotel de Weinstein. Já Asia Argento e Lucia Evans teriam sido forçadas a fazer sexo oral no produtor. As denúncias acabaram impulsionando outras celebridades a falarem sobre situações que enfrentaram atrás das câmeras mais tarde, como fez Lena Headey e Lysette Anthony.
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A atriz que dá vida a Cersei em “Game Of Thrones” revelou através do Twitter que o produtor havia feito gestos e comentários sugestivos para ela logo na primeira vez que se conheceram, no Festival de Veneza e a conduziu até o seu quarto do hotel com o intuito de apresentar a ela um roteiro em que estava trabalhando. “O elevador estava subindo e eu disse para Harvey: 'Não estou interessada em nada além de trabalho. Por favor, não pense que eu vim com você por outra razão. Nada irá acontecer'. Ele ficou calado depois que eu falei. Furioso”, contou. Headey não chegou a entrar no cômodo, mas quando foi para o carro no intuito de ir embora, o produtor chegou a pedir a ela que não contasse sobre o ocorrido a ninguém.
Já a britânica Anthony relatou ao The Sunday Times que foi jogada contra um cabideiro para que o sexo não consentido acontecesse. “Eu mantive meus olhos bem fechados, segurei minha respiração e esperei ele ir logo com aquilo”, contou. Desde a publicação da matéria da The New Yorker que aconteceu no primeiro domingo do mês (05) até hoje, a lista de vítimas, por sua vez, não para de crescer atingindo a marca de cinquenta mulheres, segundo o Hollywood Reporter , evidenciando que esses, infelizmente, não são casos isolados.
Passado que condena
Entretanto, Harvey Weinstein não é o único agressor que, até então, comandava os negócios em Hollywood. Na onda das denúncias, outras atrizes também resolveram se pronunciar sobre assédios que sofreram na indústria do entretenimento, como fez Resse Witherspoon. Em declaração para a Elle , a produtora de “Big Little Lies” revelou que aos 16 foi assediada por um diretor de cinema e que resolveu ficar calada porque tinha medo que sua carreira fosse abalada. “Tenho nojo da pessoa que me assediou quando tinha 16 anos e raiva dos agentes e produtores que me fizeram sentir que o silêncio era a condição para conseguir o emprego. Gostaria de poder dizer a vocês que foi um caso isolado na minha vida, mas não foi”, disse.
Jennifer Lawrence, em um evento da Elle
para as mulheres de Hollywood também revelou que passou por situação de assédio moral e sexual no início da sua carreira. Segundo a atriz, foi sugerido a ela que perdesse ao menos seis quilos em duas semanas e, mais tarde, uma outra produtora a fez ficar nua ao lado de outras cinco mulheres. “Elas eram muito mais magras do que eu. Depois dessa experiência humilhante que se passou por um teste de elenco, a produtora me disse que eu deveria usar fotos de mim mesma nua como motivação para emagrecer. E então um outro produtor que estava presente disse que não me achava gorda – pelo contrário, que eu era ‘perfeitamente fodível'”, contou. Kristen Stweart, por sua vez, durante o mesmo evento, revelou que não sabe contar “quantas vezes eu já salvei maquiadoras e assistentes de câmeras de produtores que assediam. E quando eu digo que salvei, é algo momentâneo”, contou a atriz. “Então, eu diria, vamos estar cientes disso em todos os níveis. Essas garotas estão presas assim como alguém poderia estar porque elas têm medo de pegar seu próximo emprego, assim como qualquer atriz”, completou.
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O assunto dominou o universo do entretenimento e alguns astros também começaram a comentar o caso, como fizeram os atores George Clooney e Ben Affleck, além do cineasta Oliver Stone. Entretanto, por mais que repudiassem as atitudes do produtor, muitas atrizes trouxeram à tona casos de assédio em que esses astros estariam envolvidos. Segundo Vanessa Marquez, que trabalhou com Clooney na série “Plantão Médico” no fim da década de 1990, o ator teria acobertado um caso de assédio sexual que a atriz havia sofrido nos bastidores e ainda soltou que “as mulheres que não jogam o jogo perdem a carreira”. Affleck teve vídeos de entrevistas que realizou no inicio dos anos 2000 redescobertos nas redes sociais, nos quais ele assedia uma repórter e outro em que passa as mãos nos seios da atriz Hilarie Burton. Stone, por sua vez, foi acusado por Carrie Stevens de ter agarrado seus peitos na saída de uma festa e tido uma conversa inconvenientemente sexual com Patricia Arquette – ambas histórias relatadas no Twitter das respectivas atrizes.
Outra polêmica que surgiu diante das denúncias, foi a do acobertamento de casos de assédio e abuso sexual na mídia. O ex-editor da revista Variety , Peter Bart foi acusado de esconder os crimes de Harvey Weinstein. Segundo matéria publicada pelo Huff Post dos Estados Unidos, diversos jornalistas relataram a resistência do editor de apurar pautas que tivessem relação com o trabalho do produtor ou que, de alguma forma, criticassem a sua posição na indústria do cinema. Segundo um jornalista que não quis se identificar, quando ele sugeriu uma pauta sobre a Miramax, produtora que na época pertencia a Weinstein, a apuração foi de cara negada por Bart. “Concluiu a história imediatamente, levantou a voz e, basicamente, assegurou-se de que não só essa história não acontecesse, mas que nunca mais eu sugerisse algo parecido. Essa foi a única vez que uma pauta foi rejeitada sem uma razão aparente”, contou.
"Eu também"
A revolta com a situação fez com que a atriz Alyssa Milano, no inicio da semana, provocasse uma campanha nas redes sociais com a hashtag #MeToo (#EuTambém) na intenção de que as mulheres continuassem a falar sobre os casos de abuso e assédio sexual que sofreram dentro da indústria do entretenimento. “Se todas as mulheres que foram assediadas ou abusadas sexualmente escrevessem ‘Eu também’, nós daríamos as pessoas a magnitude do problema”, escreveu. Assim como campanhas que já tomaram conta das redes sociais anteriormente como “#YesAllWoman” e, aqui no Brasil, “#MeuAmigoSecreto” e “#PrimeiroAssédio”, diversos relatos de violência sexual contra a mulher emergiam chocando a internet. A publicação da atriz chegou a ser compartilhada mais de 20 mil vezes e atrizes como Patricia Arquette, Anna Paquin, Amber Stevens West, Viola Davis e Mia Farrow responderam ao chamado. Evan Rachel Wood ainda relatou uma experiência pessoal: “Porque eu estava com vergonha e sendo considerada como uma ‘garota festeira’ eu senti que eu merecesse isso. Eu não deveria estar lá, eu não deveria estar ‘mal’”, escreveu.
Apesar de muitas mulheres terem aderido ao movimento, a hashtag sofreu algumas críticas nas redes sociais. De acordo com os usuários, a maioria das pessoas que se pronunciaram sobre os casos de assédio que haviam sofrido eram mulheres brancas e midiáticas, o que demonstra que espaços para que se fale sobre experiências de assédio sexual ainda são bem restringidos para outras profissionais do audiovisual que não se encaixam neste perfil – vale lembrar, por exemplo, que na matéria publicada pelo The New Yorker algumas mulheres que acusaram Harvey Weinstein de cometer assédio optaram por omitir os seus nomes das denúncias por medidas de segurança.
Não é só em Hollywood
Apesar das denúncias terem ganhado notoriedade nos Estados Unidos na última semana, casos de assédio e abuso sexual na indústria do entretenimento também acontecem no Brasil. À BBC , a diretora de cinema Marina Person contou que com menos de 20 anos de idade foi contratada para fazer uma propaganda e que o fotógrafo a agarrou logo após a sessão. Além disso, outro caso veio à tona este ano, a da figurinista Su Tonani, que denunciou publicamente o assédio que sofreu com um dos maiores nomes da emissora, José Mayer.
O problema, apesar de ganhar bastante notoriedade no mundo do audiovisual, não se limita apenas a este setor da sociedade. De acordo com os dados divulgados pelo Workana, uma plataforma de trabalho freelancer online, 74% das mulheres na América Latina já vivenciaram discriminação ou assédio sexual em ambiente de trabalho. E, segundo pesquisa da ONG Think Olga – também divulgada no site do governo federal – 99,6% das 7,7 mil mulheres entrevistadas já foram assediadas em algum momento de suas vidas, seja em ambiente de trabalho ou não.
Efeitos
O burburinho em torno de Harvey Weinstein, por sua vez, rendeu frutos. O produtor foi expulso da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, conhecida por promover anualmente a premiação do Oscar, a Academia Britânica de Cinema (BAFTA) também optou por afastar o profissional de suas atividades e sua esposa, Georgina Chapman, depois de dez anos casada com o produtor anunciou o seu divórcio.
Além disso, o ator Channing Tatum divulgou sua decisão de se retirar da adaptação do livro “Perdão, Leonard Peacock”, romance de Matthew Quick, mesmo autor do renomado “O Lado Bom da Vida”. Ao lado de Reid Carolin, os cineastas que iriam dirigir o longa através da The Weinstein Company, a empresa de Harvey, afirmaram em rede social que “as mulheres valentes que tiveram coragem de se levantar e falar a verdade sobre Harvey Weinstein são as nossas verdadeiras heroínas. Elas estão fazendo a parte pesada do trabalho para construir o mundo igualitário em que todos merecemos viver” e decidiram não mais trabalhar com a TWC nem neste e nem em outro projeto.
Diante do furor de denúncias, outro caso que veio à tona foi o de Roy Price, presidente da Amazon Studios. Ao Los Angeles Times , Isa Dick Hackett, produtora das séries “The Man in the High Castle” e “Philip K. Dick’s Eletric Dreams” afirmou que diante do escândalo com Weinstein se sentiu inspirada a relatar também uma de suas experiências – a com o presidente da Amazon. Segundo a produtora, Price disse coisas obscenas para ela quando os dois estavam eum táxi após um evento promocional da Comic-Con de San Diego em 2015 e, mais tarde, em uma festa em que ambos se encontraram. O caso foi levado à cúpula da Amazon, mas sem resultados... até esta semana: Roy Price acabou renunciado o seu cargo no inicio da semana.
Além disso, o Twitter divulgou nesta semana que teria regras mais duras para evitar assédio sexual online. A rede social irá suspender permanentemente contas que sejam identificadas como fontes originais de reprodução de conteúdo não consensual, que no caso são imagens “debaixo de saias” ou “conteúdo de câmeras ocultas”. Outro aspecto da nova política é que conversas com teor sexual que sejam identificadas como assédio terá uma atenção quando for notificada à empresa. Entretanto, a medida já está causando controversa uma vez que a conta da atriz Rose McGowan, uma das vítimas de Weinstein que utilizou a rede social para falar sobre o caso, foi suspendida por conta de uma postagem contra o ator Ben Affleck em que a atriz divulgava o seu número de telefone.
De Hollywood ao Brasil, de Weinstein a Mayer, discutir assédio e abuso sexual está cada vez mais frequente na sociedade. Diante dos últimos acontecimentos, fica visível a importância da denúncia de casos como estes para que, então, se desnaturalize comportamentos que sejam nocivos às mulheres, além de desestruturar um sistema que busca proteger agressores.