O cinema recente de Kathryn Bigelow mergulha em temas quentes e envolve-se de uma atmosfera de denúncia. Se em “Guerra ao Terror”, os efeitos de uma guerra desatinada nos soldados era o foco, em “A Hora Mais Escura”, questionava-se a cultura dos fins justificam os meios em uma guerra travada longe das manchetes e que envolvia os mais altos escalões dos EUA na caçada a Osama Bin Laden. Essa vocação de documentar a contemporaneidade por meio da ficção chega a um curioso extremo com “ Detroit em Rebelião”.
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O filme retrata eventos ocorridos na década de 60, quando em meio à escalada de tensões que envolviam os direitos civis, a cidade de Detroit viveu dias de caos urbano na esteira da sempre preocupante e reincidente violência policial. Apesar do distanciamento histórico do recorte do filme, o longa é lançado em um momento conturbado da vida política e social americana, com Trump no poder e notícias de abuso policial contra cidadãos afro-americanos quase que diariamente. Bigelow foi criticada por tomar para si o direito de contar uma história com ponto de vista negro.
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O filme marca a terceira colaboração seguida dela com o roteirista e produtor Mark Boal. A câmara nervosa, tremida, dentro da ação – característica forte de seus últimos filmes - está novamente presente e, embora seja um filme com uma história forte e conflitos ruidosos, há gargalos na direção que entregam que talvez tenha mesmo faltado convicção a Bigelow.
A cena capital, em que um grupo de policiais municipais brancos aterroriza, abusa e achaca um grupo de jovens negros, é mais longa do que deveria, permitindo com que a tensão necessária, e objetivada pela realização, se esvaia eventualmente. Assim como os eventos subsequentes são por demais acelerados. Uma escolha de direção, ainda que compreensível, Bigelow queria incomodar o público, fazer com que este interiorizasse todo aquele horror, se mostra equivocada. Há outro par de cenas pensadas para provocar certo impacto que acabam resultando em puro maniqueísmo. Ainda assim, Bigelow e Boal se esforçam para romper o discurso pronto e oferecer um painel em 360º do caos que Detroit se mergulhou em 1967. Do racismo tolerado e furtivamente patrocinado pelo Estado à insolência de certos jovens, passando pelo conformismo de outros e esbarrando nos sonhos perdidos da maioria.
Os atores ajudam a disfarçar os problemas do filme e garantem a empatia – ou o asco – necessários. Se Will Pouter enoja como um policial cada vez mais à vontade com seu próprio racismo, John Boyega impressiona como um homem tentando se equilibrar entre dois empregos em meio a guerra urbana assentada na cidade e imbuído da cidadania de evitar que vidas se percam, mas ciente de que ser negro naquele momento era ser um alvo. Algee Smith, que faz Larry, um jovem que sonha em ter um grupo de blues, é o mais perto de um protagonista que o filme apresenta e o adorna com muito coração.
O registro urgente de “Detroit em Rebelião” , no entanto, não permite que essas atuações ganhem o primeiro plano e isso acaba virando outro problema narrativo para o longa. Ao sistematizar seu cinema, nos temas, na estrutura narrativa, na urgência, Bigelow corre o risco de virar a fumaça do que já fora fogo.