Algumas dedicam suas vidas ao lar, outras acordam cedo para atravessar a cidade e se colocar à disposição em seus postos de trabalho, há também aquelas que acreditam viver uma vida medíocre em relação aos seus próprios anseios. Todas elas são mulheres, com personalidades diferentes, histórias de vida compostas por diversas reviravoltas e um destino em comum: a Penitenciária Feminina da Capital, em São Paulo. “ Prisioneiras ”, o novo livro do conceituado médico Drauzio Varella, que dedicou décadas de sua vida ao trabalho voluntário no atendimento às pessoas privadas da liberdade, ressurge em 2017 relatando as mais diferentes trajetórias de algumas dessas figuras como a última obra de uma trilogia que faz um importante diagnóstico do sistema carcerário brasileiro.
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De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penintenciárias (Infopen), de 2000 a 2014 o número de homens presos no país aumentou em 220%, enquanto o de mulheres atingiu o substancial valor de 567%, alcançando o status de quinto país com mais mulheres encarceradas no mundo. Dessa população, 58% tem o envolvimento com o tráfico de drogas e o perfil é majoritariamente o mesmo: com idades abaixo de 34 anos, negras e com baixa escolaridade.
Acessar os dados sobre a situação dessas prisioneiras é uma tarefa fácil no País, ainda mais com o advento da internet que disponibiliza relatórios sobre a situação na rede. Entretanto, adentrar na complexidade destes rostos por detrás dos números requer determinação. Em “Prisioneiras”, Drauzio Varella expõe o funcionamento da vida atrás das grades: os maços Derby como moeda de troca na economia local, as drogas que são consumidas e as proibidas de acordo com o Primeiro Comando da Capital, facção que conquistou certa soberania no funcionamento do crime no País, além das classificações a respeito de orientação e identidade sexual que se formam por detrás das celas, dos sapatões, como as próprias mulheres intitulam, às mulheríssimas.
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É diante deste cenário que o médico consegue capturar alguns relatos que demonstram a complexidade dessas vidas, como a de Mari, que simulou um sequestro consentido para uma jovem de classe média sanar dívidas com o crack e acabou sendo enquadrada pelo suposto crime. Ou de Alice, que foi parar na prisão depois de assassinar o estuprador de sua irmã e mais tarde mais quatro homens com o mesmo comportamento violento.
Já no caso de Fernanda e a sua mãe diabética, o envolvimento com as drogas veio por estar em uma casa alugada por traficantes, onde eles escondiam as drogas, e a polícia acabar prendendo todos os envolvidos, enquadrando inclusive a família, ainda que não sabiam da situação. Também há as histórias das mulheres-ponte, presas por levar drogas para dentro das prisões masculinas em seus próprios úteros para sanar dívidas dos seus companheiros e ajuda-los a manter uma vida minimamente confortável atrás das grades. Os relatos são inúmeros – e fortes – que buscam resgatar a humanidade daquelas que a sociedade acredita não possuir nenhuma.
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A obra é dividida em diversos capítulos que resgatam as mais diferentes histórias das prisioneiras, além de fazer um panorama sobre como é a situação do encarceramento feminino no país. Em “Trabalho”, por exemplo, o médico busca evidenciar como são as relações de ofício dentro das celas, as dificuldades de se arrumar um emprego efetivo e, diferentemente do que o senso comum impõe, o anseio das prisioneiras em conquistar uma atividade mesmo encarceradas.
Já em "Celas Especiais", o autor resgata a diferença de tratamento entre as pessoas que infringem a lei: as que possuem um ensino superior completo e as que não, trazendo relatos dos crimes dessas mulheres e suas motivações para realizá-los. Entre uma página e outra, um dos principais temas que vem à tona são as falhas da chamada “guerra às drogas”, que aprisiona diversas pessoas cotidianamente e não soluciona o problema do tráfico ou do uso de entorpecentes na sociedade.
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As principais consequências dessa conjuntura ficam notórias diante dos relatos: desestruturação familiar, intensificação das dificuldades financeiras e mais violência. Diante das dificuldades encontradas dentro e fora das celas, Varella narra que as mulheres criam laços de afinidade e expõem preocupações com seus filhos de maneira que destoa do que encontrou nos presídios masculinos. O médico atribui essa união e esse cuidado ao chamado instinto materno, como algo intrínseco à biologia da mulher.
Entretanto, diante de um cenário social em que as responsabilidades recaem constantemente ao sexo feminino, em que as facções de crime organizado, como o próprio Primeiro Comando da Capital, punem esta classe com pena de morte caso abandone seus maridos - que muitas vezes são a causa de seus próprios encarceramentos - e em um mundo onde a violência é intrínseca às vivências dessas mulheres, é quase que inevitável que o comportamento da grande maioria preze pela sobrevivência umas das outras e de sua prole, que muitas vezes contam apenas com a figura da mãe, já que o abandono paterno é uma realidade constante no País.
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Perante um cenário de constantes discussões sobre a posição da mulher na sociedade, de crescente violência urbana, de superlotação dos presídios e do avanço do conservadorismo que rejeita as conquistas dos direitos humanos, “Prisioneiras” de Drauzio Varella abre as portas para que os estereótipos sobre o mundo do crime sejam colocados de lado e o seu verdadeiro significado seja debatido. A obra busca tratar de um tema delicado resgatando situações do cotidiano do voluntário, bem como iluminar a efervescência de vida que acontece dentro das celas e que frequentemente é esquecida. Entre uma passagem e outra, fica evidente o recado: é necessário repensar o modelo carcerário urgentemente.
"Prisioneiras"
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 296
Autor: Drauzio Varella