Seja na televisão, ao vivo ou na internet, é fato que as mulheres estão ocupando cada vez mais o espaço da indústria da música . Muitas se apresentam com letras mais provocantes e outras fazem do seu corpo uma ferramenta de expressão, seja na dança ou nas suas próprias performances. Em defesa de reassumir as rédeas da própria trajetória na indústria do entretenimento, essas artistas se arriscam nos palcos e levantam a discussão que busca encontrar os limites da linha – muitas vezes tênue - entre a objetificação e o empoderamento de seus corpos.
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“Eu falo que a gente tem de usar todos os sentidos do corpo porque ele é chave de tudo”, afirma a funkeira Mc Mayara em entrevista concedida ao iG . A cantora ganhou notoriedade por realizar um trabalho onde o principal tema de suas canções é a liberdade sexual feminina. “Eu trabalho buscando os nossos direitos, mostrando que a gente pode, procurando liberdade. Mostrar que a gente é livre pra todo mundo. É meu corpo, minhas regras. Eu uso as roupas que eu quero da forma que eu quero, não tem nem porque as pessoas reclamarem” ,completa a artista. “Se a gente não faz nada, a gente fica parada no tempo”, reflete.
Nos últimos anos, o funk começou um movimento contrário às letras degradantes ao corpo feminino, com mulheres que colocam o pé na porta para essa ideia de objetificação e buscam transformar a imagem de seus corpos na indústria do entretenimento. Valesca Popozuda, Anitta, Ludmilla e a própria Mc Mayara são algumas das artistas que se consagraram nessa nova onda musical. “Eu acredito que o funk é um espaço muito ocupado por homens e daí a gente conseguiu conquistar o nosso espaço através da música, só para fazer as pessoas entenderem o que é o feminismo e os direitos das mulheres”, opina a artista.
Entretanto, não é só no funk que essas artistas buscam mudanças. O universo do pop também embalou nessas transformações, trazendo ícones como Ariana Grande que já defendeu publicamente o seu posicionamento de usar o corpo de maneira séria na música ou até mesmo artistas de música alternativa, como Karina Buhr, que lançou o seu disco “Selvática” (2015) de topless, naturalizando a sua nudez. Para Mc Mayara, o avanço nos debates sobre a condição das mulheres na sociedade influenciam na música e, consequentemente, podem alcançar mais pessoas. “Muita mulher entende o que é o feminismo através do funk. Eu converso com muitas mulheres que me julgaram e a gente vai lá e começa um debate”, explica a funkeira.
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O outro lado
Apesar do cenário parecer favorável, a objetificação do corpo da mulher ainda é uma realidade muito forte na mídia. Para Rachel Moreno, psicóloga do Observatório da Mulher e Articulação Mulher e Mídia, a exploração do corpo da mulher possui um viés muito bem articulado: o comércio. “Essa super exploração acontece porque afinal de contas a mulher vende”, reflete a estudiosa. “Quando começa a ter musiquinhas que acabam pegando mais o corpo tipo ‘um tapinha de amor não dói’, na verdade você acaba tendo a reprodução da banalização da violência e da utilização do corpo da mulher”, completa Moreno.
Para ela, a sexualidade como foco na música é um reflexo de uma transformação que a sociedade está passando pelos últimos 30 anos. “Não era permitido às mulheres a vivência da sua sexualidade antes do casamento, de lá pra cá vivemos um período chamado revolução sexual que de alguma maneira acabou resultando no fato das mulheres terem o direito de viver sua própria sexualidade”, explica. “Mas no meio de caminho muitos valores se perderam, e as mulheres acabaram incorporando padrões masculinos de masculinidade. Tem mulheres que de tanto verem seus corpos serem comercializados, lançam mão para fazê-lo, mas a lógica que se repete é a lógica do dominante”, completa a psicóloga.
A cantora Camilla Cabello, ex-integrante do grupo de pop Fifth Harmony tinha apenas 19 anos quando começou a sua carreira no universo da indústria musical. Em entrevista concedida para Lena Dunham a cantora desabafou sobre a sua condição nos bastidores: “Especialmente por ser uma girlband, muitas vezes as pessoas tentaram nos sexualizar só para chamar mais atenção. Infelizmente, sexo vende. Definitivamente houve momentos em que não me senti confortável com essas coisas e tive que bater o pé. Sinto que foi complicado porque tivemos de crescer enquanto estávamos na frente do mundo e fazendo canções que tinham um monte de insinuações sexuais”, comentou ao podcast de Dunham.
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A idade de Camilla e a sua precoce inserção no universo da sexualização musical, entretanto, não é um caso isolado. A ideia de que os corpos jovens são os mais desejáveis para o mercado já é antiga e, como afirma Moreno, é “a ponta de um iceberg que tem suas raízes mais profundas na sociedade”. “Se você vai comprar uma roupinha pra uma criança de três ou quatro anos você já encontra sandália de salto, sainha rodada. Tinha até uma loja de departamentos de sutiãs preenchidos para meninas de oito anos”, relata. “Há um processo mais complexo de erotização precoce de crianças e no Brasil dizem que a as crianças ficam mais erotizadas porque assistem mais tempo de televisão e a grande mídia usa e abusa esse expediente. Assim a gente acaba tendo casos que refletem um pouco essa ponta”, completa.
A própria música reflete essa noção, com canções que enaltecem a beleza de uma “novinha” e de jovens que são menores de idade, como já fazia os Raimundos em 1999 com a canção “Me Lambe”. “Isso acabam sendo valores incorporados pela música de tanto repetidos em todos os cantos em todos os lugares e acabam sendo naturalizados”, analisa Moreno. “O que a gente acaba vendo é que isso acaba levando violência, assédio e que pode eventualmente chegar a uma fase mais violenta ainda”, completa.
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Quando questionada sobre a subversão do corpo da mulher na mídia, Rachel Moreno é clara: “ela está subvertendo a ideia quando ela é dona do corpo dela, quando ela decide o que fazer e na verdade o corpo da mulher infelizmente em nosso país e no mundo que a gente vive - mas no Brasil particularmente - está longe de obedecer as normas e mandos da própria dona. A gente não pode decidir uma série de coisas porque tem uma imposição às vezes até violenta em termos de legislação, de violência física ou banalização da violência e outras vezes a gente acaba tendo uma imposição mais sutil, através de publicidade, propaganda, e de utilização de modelos de beleza e de comportamento”, critica.