“O universo do ator é sempre maior, infinitamente maior do que o universo do personagem”, a frase é de Christian Duurvoort, preparador de elenco que trabalhou com Carolina Ferraz durante a preparação dela para viver a travesti Glória em “A Glória e a Graça” , novidade nos cinemas neste fim de março. “Essa é uma verdade que vou carregar para todos os meus trabalhos futuros”, diz a atriz em entrevista exclusiva ao iG .
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Sob muitos aspectos, “A Glória e a Graça” pode ser percebido como o projeto da vida de Carolina Ferraz . A atriz não usa essa definição, mas sua dedicação a ele – foram dez anos para tirar do papel – e a maneira apaixonada com que o aborda são indicativos mais do que suficientes.
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O filme marca a primeira aventura de Ferraz como produtora. “O tempo normal de realização de um filme no Brasil é de cinco, seis anos. Já é muito tempo”, observa. “Eu realmente, talvez pelo tema, sofri um pouquinho mais. Não foi fácil não”, conta ao contextualizar o longo tempo para tirar o projeto do papel. “A Glória e a Graça” foi financiado por meio das leis de incentivo à cultura e teve o apoio de duas empresas privadas, a Globo Filmes e o Canal Brasil que são coprodutores.
“A gente ia aos lugares e ninguém queria dar dinheiro para um filme em que a personagem principal era uma travesti. Ninguém, ninguém, literalmente ninguém”, conta Ferraz. Até comento que cheguei a ouvir de alguns executivos ‘puxa Carolina, você é uma mulher tão bonita, tem uma carreira tão bacana, uma reputação tão boa. Não faz isso não. Vai te dar problema’”.
Criando Glória
“Eu acho que um ator é a sucessão de papeis que ele consegue interpretar. Não necessariamente dos papeis que ele tem competência para interpreta”, filosofa quando indagada a respeito de vermos uma Carolina Ferraz totalmente diferente no filme de Flavio Ramos Tambellini . “Eu acho que por uma questão de estereótipo eu passei minha vida toda interpretando mulheres ricas e sofisticadas. Tive poucas exceções na televisão e acho que isso acabou me rotulando. Mas o meu trabalho como artista, como atriz é me libertar disso tudo e mostrar que eu posso e quero fazer qualquer coisa”.
Carolina sabe que tem em mãos um grande papel, mas sabe que assumiu uma grande responsabilidade ao se engajar nele. “Tenho profundidade cênica de interpretação para poder fazer essas coisas e estou querendo correr riscos, né?”, justifica. Para ela, o ator não pode se levar a sério demais. “Se eu me levasse muito a sério, talvez não fizesse essa personagem”, divaga pouco antes de concluir com convicção: “mas estou louca por desafios. Louca para me distanciar de mim mesma”.
E Glória era o desafio perfeito, mas era preciso fazê-la do jeito certo. “Me sinto muito acolhida intelectualmente pelo Flávio. É um diretor que trabalha sem se sentir agredido”, diz sobre Tambellini que sempre recebeu suas colocações como atriz com generosidade. Sua maior preocupação era criar uma “personagem humana. Eu não queria fazer algo estereotipado”. Ferraz conta que conversou com mais de 60 travestis entre Rio e São Paulo para filtrar a vivência, as histórias delas para encontrar Glória. Essa pesquisa foi estremecida pelas incertezas que rondavam o projeto. “Eu comecei a ficar inquieta: ‘tô envolvida demais e nem sei se esse projeto vai acontecer’ Eu só fui retomar mesmo dois meses antes da gente começar a rodar”.
A atriz usa uma prótese dentária para ter uma embocadura mais masculina. “Eu queria ter mais gengiva. Deu certa estranheza”, recorda. A Glória nasceu, no gestual e na fisicalidade ali, “quando eu me montei”, mas Carolina já a confeccionava com carinho e zelo há muito tempo.
Afeto
Cinéfila, gosta de recomendar filmes a seus seguidores nas redes sociais e expressar sua admiração por artistas, Carolina Ferraz reconhece que fez menos cinema do que gostaria por uma série de diferentes, mas complementares razões. “O cinema é um ambiente muito restrito. Você observa que atores que geralmente fazem cinema, fazem muito cinema. É difícil fazer esse breakthrough”. “A Glória e a Graça” tem todo o potencial para representar esse momento.
“Eu quero isso. Correr riscos e nada melhor do que o cinema para correr riscos. Hoje eu sinto que estou no meu melhor momento como intérprete. Me sinto de uma maneira muito mais completa, muito mais profunda do que estava há 20 anos”, avalia. E a atuação como produtora pode servir aos propósitos da Carolina Ferraz atriz. Parte desse raciocínio já pode ser empregado mesmo em “A Glória e a Graça”. “O protagonismo do filme não é a questão do transgênero , o protagonismo é o resgate, o amor, são as segundas oportunidades. O fato de estar interpretando uma travesti só engrandeceu”, resume com extrema assertividade.
Esse afeto é estendido às parceiras de cena, Sandra Corveloni e Carol Marra. A primeira, uma “deusa da interpretação, uma atriz de grandeza inquestionável” e a segunda, uma legítima "mocinha de novela das 21h". Para Ferraz, o fato de Marra não ser aventada para tal papel é mais uma prova desse preconceito velado que impera no Brasil. “Acho que somos um pouco iludidos de não reconhecermos o preconceito em nós mesmos. Até porque não há educação para o povo e o preconceito prospera”, teoriza.
Com extrema generosidade, Carolina Ferraz se defende de eventuais críticas sobre viver uma travesti no cinema. “Eu entendo você pertencer a um grupo e não conseguir espaço para se retratar. É uma violência muito grande. Eu posso até ser criticada por ser uma atriz cis e estar fazendo uma travesti. Eu peço desculpas e peço licença porque estou há quase dez anos lutando por essa mulher, me apaixonei por ela, pela humanidade dela, e o fato dela ser uma travesti só torna tudo mais maravilhoso ainda”. “Eu poderia ter lutado dez anos para contar outra história, não foi o caso”.