Não é novidade: o funk está dominando o mundo. O gênero musical tem conquistado um espaço cada vez maior ao redor do mundo e viralizado nas redes sociais virando fenômenos musicais. A corrida para o hit do carnaval, por exemplo, demonstra esse novo cenário da música, em que diversos artistas , muitos deles estreantes, roubaram os holofotes para si trazendo canções inéditas que não saem da boca do povo. Entretanto, não é sempre que essas canções são vistas com bons olhos pelo público. Estar em evidência, às vezes, pode acarretar uma série de debates e problematizações.
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Só Surubinha de Leve , de Mc Diguinho, é um exemplo disto. O funk , que foi ao ar em dezembro no dia 14 de dezembro de 2017, ganhou notoriedade somente em janeiro, quando conquistou o topo das músicas mais ouvidas no serviço de streaming do spotify. Com uma letra que foi considerada por muitos apologia e incitação ao estupro, uma vez que declara “taca bebida, depois taca a pica e abandona na rua”, a música foi retirada do ar depois de uma série de protestos nas redes sociais.
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Entretanto, esta não foi a única polêmica que os apontados hits do carnaval enfrentaram durante os primeiros dias do ano. A canção de Jojo Todynho, Que Tiro Foi Esse também foi alvo de extensos debates que questionaram se a canção estava, na verdade, incitando a violência, uma vez que seu lançamento detonou na internet uma brincadeira em que as pessoas caiam no chão simulando ter levado um tiro. A cantora chegou a se manifestar, afirmando que nunca teve a intenção de promover a violência e que sua canção se referia, na verdade, a alguém que estaria arrasando na balada usando o jargão do “que tiro”, muito comum nas redes sociais. Mas afinal, se essas canções são consideradas tão problemáticas assim, por que elas viralizam?
Soltando na rede
Para a pesquisadora Mylene Mizrahi, autora do livro “A estética funk carioca: criação e conectividade em Mr. Catra”, o funk é um gênero que, assim como outros, falam sobre diversos temas, podendo até mesmo trazer à tona louvações à Deus, em que o campo religioso ganha força. “Mas o sexo e a violência são as teclas que a própria mídia bate, por conta desse fenômeno de midiatização, do que dá visibilidade”, comenta. “Outro ponto é: por que que essa música viralizou da forma que ela viralizou? Porque essa música tem tanta aderência a compra-la. E aí a gente vai para um outro lado que é o que de fato que a gente vive numa sociedade misógina, machista, homofóbica”, completa.
Já para a jornalista e especialista em redes sociais Ana Freitas, a evidência de canções como Só Surubinha de Leve faz parte de um sistema digital. “Essas plataformas (FB, Google, YouTube) desenharam lá uma formula matemática que explora nossas fraquezas cognitivas. Na verdade é simples: eles precisam ser mais usados e ser mais relevantes entre as pessoas; por isso, vão se esforçar pra entregar para gente o que a gente tem mais chance de clicar, ou seja, aquilo que nós queremos ver”, comenta. “O resultado é que toda a produção audiovisual e jornalística, que usa esses meios pra se propagar, acaba mudando de objetivo. Antes o objetivo era informar, entregar o que é de interesse do público. Com a arte, o objetivo era se expressar, colocar pra fora algo. Agora, o objetivo é ganhar likes, curtidas, assinaturas, compartilhamentos”, completa. Desta forma, segundo a especialista, os produtores de conteúdo acabam o tempo todo buscando se encaixar em um formato que, de certa forma, agrade ou instigue o público. Assim, o que é considerado polêmico acaba ganhando visibilidade.
Freitas acredita que a proibição da publicação de conteúdos como Só Surubinha de Leve não é a solução para lidar com as polêmicas ocasionadas por canções. “Empresas privadas podem se quiserem [proibir a canção], mas, na minha visão, é algo complexo porque o YouTube e o Facebook por exemplo são monopólios, e censurar essas coisas abre precedentes complicados”, afirma.
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O advento das redes sociais e serviços de streaming de fato mudaram o cenário da música – e do funk. Nos anos 2000, quem apertava o play na playlist dos hits do ano não deixava de escutar o convite de Mc Marcinho para falar de amor. Dono de canções que entraram para a história, como Glamurosa , o cantor revela que de lá pra cá muita coisa mudou na produção musical. “Não tinha internet quando surgiu o funk lá nos anos 1990. Tínhamos que marcar local pra tocar, um encontro para levar o show aonde queríamos e assim tentávamos estourar”, conta. “A internet hoje é uma faca de dois gumes: da mesma forma que te levanta, ela te bate e te coloca embaixo, então tem que tomar cuidado com o que você posta porque hoje vira um turbilhão tanto pra te elogiar quanto para acabar com você”, revela o cantor, que reconhece que a plataforma lançou muitos artistas nos últimos anos.
Para ele, a viralização de músicas com teor negativos não influência o movimento do funk no Brasil. “A internet é terra de ninguém, gera antipatia de algumas músicas como gera idolatria e tem coisas que realmente não é necessário”, comenta. “Cada um tem o direito de cantar o que quiser e responder pelo o que fez. É um artista do funk que foi lá e cantou uma certa música que as pessoas não gostaram, não aderiram como pode vir um axé, um rock , um pagode, falando algo que você não gosta e elas vão se manifestar de maneira negativa e o funk não é afetado de maneira alguma”, completa o cantor.
O problema é o funk?
Ainda que o funk seja muitas vezes culpabilizado por promover discursos que, a princípio, sejam violentos, Mizrhai alerta: “O funk ocupa esse lugar de dar conforto, o do ‘não sou eu’, de ‘não é meu filho’”, explica. Para a pesquisadora, o gênero musical pode ser considerado o “outro do outro”. Desta forma, é atribuído ao funk em um lugar de falta de educação e cultura de tal forma que seja comum buscar desvincular-se de qualquer identificação com o gênero. “O funk está fazendo apologia então quando acabar o funk acaba o estupro, o trafico, a misoginia? A gente sabe que não”, critica.
Para Freitas, “essa onda de canções super machistas na música pop de massa mais recente no Brasil surgiu em larga escala no sertanejo, só que o gênero tem um ‘branding’ diferente”, opina. “As pessoas não odeiam funk. As pessoas não sabem disso, mas o que elas não gostam mesmo é de pobre e de negros. É da estética, da linguagem, de tudo que tá associado às classes mais desfavorecidas. Não tem a ver com conta bancária, tem a ver com os símbolos culturais que elas associam à favela, à quebrada”, completa. Ainda, para Freitas, não assumir a responsabilidade dos problemas sociais muitas vezes expostas nas músicas que emergem no mercado é uma forma da sociedade se desvincular da sua própria responsabilidade em combater as diversas formas de violência.
Um movimento
A reação diante da canção Só Surubinha de Leve, para Mizrahi pode ser explicada por meio de dois movimentos que estão acontecendo no Brasil. “Um é o conservador e o outro é o feminista que de fato não aceita mais este tipo de discurso”, comenta. “Foi feita uma resposta ao Só Surubinha de Leve que é muito interessante de duas mulheres e elas tão falando justamente isso: vamos problematizar. Ao invés de dizer o funk é isso ou aquilo é melhor problematizar a questão, de que o país machista, dos altos índices de violência contra a mulher sobre o qual o funk inclusive está falando”, completa.
Não é à toa, portanto, que logo após a polêmica de Só Surubinha de Leve , outras canções que também começaram a surgir sob os holofotes trazendo a tona questionamentos, como foi o que aconteceu com Vai, Faz Fila de MC Denny que chegou a ser denunciada para o spotify por conter a estrofe: ”Vou socar na tua buceta sem parar; E se você pedir pra mim parar, não vou parar; Porque você que resolveu vir pra base transar; Então vem cá, se você quer, você vai aguentar”. Além disso, a própria MC Carol, que também é funkeira, chegou a se pronunciar sobre a polêmica em suas redes sociais, afirmando que a resposta para a música já estava pronta há cinco anos com uma de suas composições.
Por outro lado, em 7 de fevereiro, a Sociedade Brasileira de Pediatria pediu ao Ministério Público para que proíba a canção Só Surubinha de Leve e Oh Novinha , de Mc Don Juan por conter conteúdos que incitam, segundo a nota, o estupro e a pedofilia.
A onda de proibições no carnaval também aconteceu. Que Tiro Foi Esse de Jojo Todynho foi excluída da playlist de folia do município de Joaquim Gomes, região do Norte de Alagoas por ser acusada de promover a violência. Freitas, por outro lado, explica: “Significados mudam o tempo todo. Há cinco anos, se alguém falasse pra você ‘QUE TIRO FOI ESSE?’, você pensaria que aquela pessoa tinha acabado de escutar um tiro literal de arma. Só que virou uma gíria e adquiriu um significado diferente, de maneira que hoje você pensa na música e no máximo entende que aquela pessoa está falando algo como 'nossa, isso é incrível'”, comenta. Para ela, por conta da velocidade de comunicação atualmente, nem todos conseguem se conectar ao novo significado das expressões porque ele nem sempre chega a todos os públicos.
Ainda que o gênero enfrente polêmicas e acusações, Mc Marcinho, que tem dedicado sua carreira a novos projetos atualmente, classifica: “o funk está em alta, bombando”. “Nós temos feito parcerias com todo mundo, de vários gêneros musicais e o funk cresceu muito e eu creio que está em um dos seus melhores momentos”.