Marco Pigossi comenta relação do pai com namorado: 'Sempre tenso'

'É distante do universo dele, que é eleitor do Bolsonaro', declarou o ator

Foto: Reprodução/Instagram - 11.07.2022
Marco Pigossi fala da relação com família após se assumir gay


Desde que se assumiu publicamente como um homem gay, no ano passado, Marco Pigossi ganhou uma certeza: levaria para o campo profissional a causa LGBTQIAP+. Depois de anos se escondendo, sustentando a persona hétero que lhe serviu de couraça por quase duas décadas, sentia responsabilidade moral e social de “compensar o atraso” e trabalhar pela comunidade. Se na vida pessoal e artística nunca teve referência em quem se espelhar, à medida que se sentia forte para falar sobre sua sexualidade, o ator passou a querer ser essa pessoa. Inspirar novas gerações. E, para ele, não existe melhor caminho para atingir o objetivo do que pela arte, “que tem o poder de tocar, humanizar e fazer refletir”.

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“Corpolítica”, documentário que produziu sobre candidaturas LGBTQIAP+ nas eleições municipais do Rio em 2020, é resultado desse processo. Dirigido e roteirizado por Pedro Henrique França, o longa foi selecionado para Queer Lisboa — Festival Internacional de Cinema Queer, em setembro. Pigossi também tem projeto de transformar em filme o pioneirismo do Brasil na distribuição de remédios e antivirais contra a Aids. Morando em Los Angeles desde 2018, deseja contar histórias positivas sobre seu país.


Parcerias com o namorado

Antes, em setembro, roda “Best place in the world”, sobre um jovem brasileiro que deixa a família evangélica rumo a Provincetown, famoso reduto LGBTQIA+ em Cape Cod, EUA. Ali, sente-se livre para viver plenamente sua sexualidade — daí o título do filme, inspirado na música de Gilberto Gil. O projeto, cuja premissa não é mera coincidência, marca a segunda parceria de Pigossi com o namorado, o cineasta italiano Marco Calvani, diretor do longa.

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— O personagem era latino, mas virou brasileiro quando entrei no projeto. O Marco acompanhou meu processo de sair do armário e transformar isso numa questão política para abrir caminhos para jovens —conta Pigossi, de 33 anos, por telefone de Toronto, onde roda o spin-off da série “The boys”. — Tenho necessidade de me expressar sobre o meu processo, sobre o que causou em mim, sobre o que pode causar nas pessoas. É uma maneira de eu me curar.

Foi o que Calvani fez no curta “A better half”, produzido por Pigossi e exibido mês passado no Provincetown International Film Festival. Centrado no reencontro de um homem de meia-idade com o responsável por tornar sua vida conturbada, o filme é inspirado no abuso que o próprio Calvani sofreu na infância e o ajudou a trabalhar o trauma. Como se vê, a relação dos dois é regada a cumplicidade. No início do ano, o ator trouxe o namorado ao Brasil. Calvani “ficou fascinado” com Belém, “porta de entrada para a Amazônia”, onde Pigossi rodava a segunda temporada da série “Cidade invisível”.

— Ele ficou existindo no meu ambiente de trabalho com uma naturalidade que me fez tão bem... A vida inteira meu trabalho e minha vida pessoal eram separados, tinha medo de que descobrissem... Pela primeira vez, esses mundos existiram juntos, e foi emocionante — lembra.

O ator também apresentou Calvani à família:

— Com meu pai, é sempre tenso, não há naturalidade. É distante do universo dele, que é eleitor do Bolsonaro. Não que ele ache que ser gay é falta de porrada, mas se vota num candidato desse... Existe um ideal político que distancia a gente. Ele nunca vai me pegar pelo braço e se unir nessa causa. Diferentemente do amor incondicional da minha mãe.

Em casa, o Pigossi adolescente jamais teve abertura para conversar sobre o assunto. Quando se descobriu gay, foi tomado pela solidão:

— Eu rezava, pedia a Deus para me consertar. A homofobia é tão enraizada que, por mais que a gente assuma, ainda vai lidar com o preconceito interno. Vesti a máscara heterossexual, sempre fui observado pela beleza. Fiz esse personagem hétero para me esconder, o que deixou minha vida mais confortável. E sou branco, privilegiado, classe média, filho de médicos. Imagina quem está na favela, é negro...

Na escola, também se escondia. Não descia no recreio, dispensou até a viagem de formatura. A salvação veio pelo teatro, onde podia viver outras realidades:

— Conheci corpos gays ali. Era um alívio deixar de ser eu. O que era uma fuga, mas carregada de carga cultural, do despertar como pessoa.

Fazer as pazes consigo é algo que Pigossi recomenda:

— A pessoa que se aceita e está feliz com o que é conhece uma força enorme. Se sente com poder para ocupar espaços. E o encontro com a comunidade é uma corrente bonita, a gente se sente fortalecido, cria um senso comunitário. Porque, no fundo, o que a gente mais quer é pertencer. Como homossexual, sentia que não pertencia a nenhum grupo. Todos esses corpos passam por isso. E quando passam a pertencer... É do caralho!

Assim como se libertar do fingimento. Pigossi, por exemplo, exagerava no aperto de mão viril, preocupação da qual se livrou:

— Me desenvolvi tentando manter um corpo masculinizado. E acho que isso veio do trauma de não poder me assumir, foi uma maneira de me proteger. Mas, hoje, aquela sombra de “não desliza” desapareceu.

Marco Pigossi diz que há um paralelo entre as motivações que o levaram a revelar publicamente sua sexualidade e as reflexões levantadas pelo documentário “Corpolítica”, de Pedro Henrique França. O longa, que terá distribuição pela Vitrine Filmes, nasceu da surpresa diante do recorde de candidaturas LGBTQIA+ no Rio de 2020, dentro do país em que a violência contra essa população bate recordes mundiais.

— Era a eleição seguinte à de Bolsonaro, período tenso para os LGBTQIAP+ por causa da legitimação do discurso de ódio, da campanha difamatória — analisa. — Queríamos entender se o recorde de candidaturas era uma resposta a esse movimento. Porque em mim foi. O Bolsonaro e a corrente de fake news causaram em mim uma reação a essa opressão, um momento de ruptura, uma tentativa de liberdade de existir.

No decorrer do longa, que acompanha quatro candidatos (Erika Hilton, Andréa Bak e Monica Benicio, do PSOL, e William de Lucca, do PT), a equipe entendeu que estava também diante de importantes questionamentos sobre o vazio da representatividade queer na política brasileira. Por que essa parcela da população não se vê nessa posição e por que aqueles candidatos despertaram para a política? Para investigar o assunto, entrou na casa dos que concorriam a um cargo público a fim de conhecer suas trajetórias. Nesse contexto, colheram histórias de massacres emocionais, abandono, bullying e falta de autoestima. “Deus não aceitaria, por que eu ia aceitar?”, questiona a mãe de Andréa Bak sobre a filha lésbica, num momento do filme. “Meu irmão me disse: ‘Eu preferia que você estivesse morta’”, conta Monica Benicio em outra passagem.

— São falas que a gente ouve a vida inteira. Me marcou quando a Monica conta que a mãe tinha medo de ela se machucar. É um medo que vem do amor, mas causa na gente a sensação de que não temos aptidão para estar nesse lugar, para nos machucar. Isso aconteceu comigo — afirma Pigossi.

Mas nem todo trabalho com que o ator e produtor está envolvido é político. A série “The Boys presents: Varsity”, spin-off do seriado de sucesso, por exemplo, é pura diversão. Na trama, que envolve uma universidade para jovens que desenvolvem superpoderes, ele interpreta o médico cientista Doutor Cardosa. O ator foi aprovado para o papel graças a um teste feito remotamente, mas ao vivo, do hotel de Belém onde estava hospedado.

— Quando se fala de super-heróis, a gente pensa em diversão, mas são horas gravando coisas muito técnicas. É uma série particular, tem um humor específico, muito sangue, sequências de luta com muito efeitos, vários poderes, órgãos sexuais... — conta. — Tem espaço para tudo (na carreira do ator), sabe? Fiquei anos numa caixinha, não quero mais ficar dentro de nenhuma.