Nas quase duas horas por telefone para esta entrevista, Ana Beatriz Nogueira só mudou o tom e alterou o seu (contagiante) bom humor quando questionada sobre o cancelamento de sua peça no Teatro dos Quatro, onde uma nova temporada de “Um dia a menos” entraria em cartaz esta semana. Em vez disso, o espetáculo reestreia sábado no Teatro Petra Gold, no Leblon, casa que recebeu a primeira temporada, em 2019. A mudança se deu por iniciativa da atriz, que não concordou com a direção do espaço da Gávea ao abrigar uma sessão de autógrafos do livro “Contra o sistema da corrupção”, do ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro.
"Eu fico inflamada, me desculpe. É que eu lembro do pôster [de Moro no teatro]", diz a atriz de 55 anos, 35 de carreira, no ar na TV com a divertida trambiqueira Elenice de “Um lugar ao sol”. "Teria cancelado mil vezes. Eu sonhei a vida toda em pisar naquele palco. O teatro alega que a relação é comercial, que precisa alugar o espaço, mas você vai alugar pra turma que desmontou a cultura no Brasil? Decidi não fazer. Sem briga. Assim como eles têm o direito de alugar, eu tenho o direito de cancelar. Quando um não quer, dois não brigam".
Adaptação de um dos últimos contos publicados por Clarice Lispector, “Um dia a menos”, que tem direção de Leonardo Netto, é sobre uma mulher que tem dificuldade de atravessar o dia na ausência de Augusta, sua empregada, enfrentando a monotonia de sua vida com certa melancolia e buscando respostas sobre sua própria existência. O diretor diz que o trabalho ganhou outras leituras por conta da pandemia. "É simples porque é um solo, quase não tem cenário, há pouca movimentação da Ana. Temos uma poltrona, uma mesinha com um abajur, ela quase não se levanta. Mas é complexo porque o que está sendo dito é muito duro e profundo", diz Netto, aproveitando para elogiar sua parceira no projeto. "É uma das maiores atrizes do país. A entrega dela é o que mais me fascina. O que você propõe ela faz, não tem discussão. É um sonho para qualquer diretor". A entrega à profissão fez com que, em 2020, com os espaços culturais fechados por causa da pandemia, a atriz fosse uma das primeiras a apostar nos espetáculos on-line, criando o projeto Teatro Já, no Petra Gold.
Prêmio internacional
A atriz deu os primeiros passos no teatro no início dos anos 1980, mesmo período em que começou a trabalhar na TV, e ganhou os holofotes ao vencer o prêmio de melhor atriz no Festival de Berlim por “Vera” (1986), de Sérgio Toledo. Desde a estreia na minissérie “Santa Marta Fabril S.A.”, em 1984, na Manchete, participou de dezenas de folhetins, como “O Rei do Gado”, “Anjo mau” e “Celebridade”. Em 2009, aos 42 anos, durante as gravações de “Caminho das Índias”, enquanto também dirigia um show da cantora Zélia Duncan, ela foi diagnosticada com uma forma branda de esclerose múltipla, uma doença sem cura. Hoje, no entanto, diante de um tratamento seguido à risca, a atriz diz que vive muito bem e que às vezes esquece da própria condição.
"Aquele vinha sendo um dos anos mais felizes da minha vida, em todos os departamentos. E recebi o diagnóstico. Até entender que berimbau não é flauta, você sofre. Foi um sofrimento por falta de informação. As pessoas se assustam com o nome, mas esclerose quer dizer inflamação. É uma doença cognitiva, mas sou obediente no tratamento. Depois de surtos cognitivos iniciais, nesses 12 anos não tive nada", diz a atriz, acrescentando que o diagnóstico lhe trouxe outra maneira de enxergar a vida. "Fiquei mais rápida. Me trouxe uma urgência de não perder tempo com bobagem".
O sucesso de sua personagem Elenice, de “Um lugar ao sol”, Ana Beatriz credita ao texto de Lícia Manzo — “está tudo ali” — de quem é amiga desde a adolescência. A autora conta que, jovens, ela e a atriz tinham planos juntas. "A gente sempre teve um sonho secreto de ser fitness. Lembro que, com uns 17 anos, a gente ia de fusquinha para a Barra, de manhã, com aquele projeto de ser saúde, nadar no mar, pegar sol. Esses projetos duravam duas semanas [risos]. Somos amigas até hoje. Ela, uma pessoa meio em extinção. Vocacionada para o teatro, para o palco, e isso eu admiro muito. Ela não espera que aconteça, está sempre produzindo, fazendo projetos interessantes. É uma das maiores atrizes brasileiras de todos os tempos", afirma Manzo.
Enquanto curte o sucesso com a Elenice de “Um lugar ao sol”, Ana Beatriz Nogueira não perde de vista o teatro, uma paixão antiga. Na pandemia, sua aposta pioneira em espetáculos on-line fez diferença. Em julho de 2020, criou, no Teatro Petra Gold , o Teatro Já, que exibiu virtualmente, até novembro do mesmo ano, 17 peças e 15 shows com renda revertida para profissionais do setor. "Estava quarentenando em Araras. Me bateu aquela falta de exercer a profissão. Perguntei ao Petra Gold se eles me dariam um espaço para inventar uma história, uma programação. E eles foram maravilhosos. Falei pra gente fazer uma coisa beneficente, para todos os técnicos, e alguns atores. Fui ligando de um em um", lembra ela que, além disso, promoveu outra série de espetáculos na sala da própria casa, na Gávea, onde tem um palco. "Dizem que eu sou madrinha de muitas peças".
Agora, alguns desses espetáculos que nasceram no projeto Teatro Já ganham montagens abertas ao público. É o caso de “Romeu & Julieta (e Rosalina)”, de Gustavo Pinheiro, que estreia sábado, no Teatro das Artes, com Julia Rabello e direção de Fernando Philbert, e conta a história de uma personagem pouco conhecida do texto de Shakespeare, por quem o protagonista foi apaixonado. "Fizemos um mês no Petra Gold. Foi um barato porque tínhamos gente do mundo todo assistindo, e isso é muito bacana", afirma Pinheiro, que exalta a atitude da amiga. "A Ana tem uma inquietude e uma generosidade louváveis".
Julia Rabello também lembra com carinho da temporada on-line — “uma resistência” —, mas está ansiosa elo encontro com o público. "Foi interessante fazer o teatro on-line, atravessamos aquele momento difícil, mas teatro é encontro. A Rosalina é uma brincadeira em cima da peça de Shakespeare, a gente dialoga com a peça original para falar de amor. A Ana é nossa madrinha".
Saudade da telona
Em cena na TV e, a partir de sábado, de novo nos palcos, Ana Beatriz Nogueira se queixa, no entanto, da falta de convites interessantes para o cinema. Sua última atuação em um longa-metragem foi em “Mulheres do Brasil” (2006), de Malu de Martino. Ela diz que prefere esperar por papéis que “realmente façam a diferença” em um projeto: "Eu não abandonei o cinema, o cinema que me abandonou [risos]. Fiz muita participação especial que depois o diretor tirou, e tirou na razão dele, claro. Mas parei de fazer por falta de convites interessantes".