Roberto Carlos no palco
Bianca Barbosa
Roberto Carlos no palco

Na virada de 1959 para 1960, o capixaba Roberto Carlos Braga, de 18 anos, se via numa encruzilhada. Em sua busca pelo estrelato no Rio, ele largara o colégio, gravara um disco de bossa nova de pouca repercussão (a turma da bossa o desprezava) e, numa fatídica madrugada de segunda-feira, foi dispensado do emprego como crooner na boate Plaza, em Copacabana, onde ficara por nove meses. A pecha de “João Gilberto dos pobres” o perseguia e, muitos anos antes de existir “The masked singer”, ele foi à TV Tupi com uma tarja preta no rosto participar do quadro “Adivinha quem é o cantor mascarado?”, do programa de Chacrinha. O público em peso apostava que era João, e não conseguiu disfarçar a decepção quando se revelou o rosto de um ainda desconhecido Roberto.

— A vida de um brasileiro é aquilo ali, eu vivi isso também. Ele é um menino do interior que vai para cidade grande, procura emprego e é demitido, conheço esse sentimento — solidariza-se o baiano Paulo Cesar de Araújo, em seu terceiro livro sobre Roberto Carlos, “Outra vez, vol. 1 (1941-1970)” (Record), que chega às prateleiras no próximo dia 6. — Eu não acredito em nada místico, não acredito que as coisas estejam determinadas. Essa era uma trajetória que por pouco não se perdia, Roberto poderia não ter conseguido. Isso faz pensar nas carreiras que se perderam, que não têm história para contar.

Primeiro de dois volumes (o segundo sai no fim de 2022), esse “Outra vez” é uma história do ídolo da canção popular brasileira (coroado Rei da Juventude em 1965, por Chacrinha), contada por meio de suas músicas — 50 capítulos, cada um centrado em uma canção gravada por Roberto, numa narrativa que vai e volta no tempo. O primeiro capítulo é “O divã”, canção gravada em 1972, teoricamente fora do escopo do volume 1 (que abrange a vida de Roberto até 1970), mas é nela que o Rei se abre sobre sua infância e sobre o acidente na linha do trem, aos 6 anos, no qual perdeu parte da perna direita.

— Foi como montar um quebra-cabeça, mas as peças se encaixaram. “Traumas” ( outra canção autobiográfica de Roberto, do seu LP de 1971 ), por exemplo, era para ter entrado no volume 1, logo depois de “O divã”, mas eu achei que ficava pesada demais — admite Paulo Cesar, que acabou fechando um volume 1 com 928 páginas, no qual se encontram ainda análises dos dez álbuns e das 241 músicas que Roberto gravou entre 1959 e 1970. — Foi um livro pensado enquanto eu fazia, tive que encontrar uma nova narrativa. Diferentemente da primeira biografia, em que eu conto a história do Roberto e passo pelas canções, nesse o foco são as canções e as histórias em torno delas.

A “primeira biografia” a que ele se refere é “Roberto Carlos em detalhes” (2006). O livro ganhou notoriedade pelo empenho do biografado em impedir judicialmente a sua circulação, num longo processo que Paulo Cesar relatou em outro livro, “O réu e o rei – Minha história com Roberto Carlos, em detalhes” (2014).

“Outra vez”, segundo o autor, é a sua tentativa de revisitar o banido “Roberto Carlos em detalhes”, livro com o qual esperava iniciar e ali mesmo encerrar sua contribuição à bibliografia sobre o Rei. — São as ironias da história. A ideia inicial era fazer um livro sobre Roberto que eu nem sabia se seria uma biografia. A princípio era para ser mais uma análise histórica, um trabalho de final de curso na faculdade que acabou tomando vulto e virando “Roberto Carlos em detalhes” — recorda-se. — Mas aconteceu tudo, ele acabou resultando em “O réu e o Rei”, e agora me senti na necessidade de reescrever essa história do Roberto em dois volumes. Sem esse contexto histórico, “Outra vez” não teria existido.

Nos dois volumes da nova obra, Paulo Cesar de Araújo teve a oportunidade de reescrever “Roberto Carlos em detalhes” incorporando informações de livros que foram publicados depois de 2006, fossem eles autobiografias (de Wanderléa, Erasmo Carlos e Maria Stella Splendore, mulher do estilista Dener, com quem Roberto teria tido um caso) ou mesmo biografias — como as de Maysa (outra das rumorosas relações extraconjugais do Rei), Carlos Imperial e Ronaldo Bôscoli. — E a minha própria pesquisa avançou, no período da infância, na parte do acidente e na de quando fazia shows como cantor de boleros pelo interior de Minas, com 12, 13 anos — conta Paulo Cesar, que descobriu novos personagens, voltou a falar com outros do primeiro livro e ouviu novamente antigas entrevistas (que vinha fazendo desde os anos 1990), além de incluir recentes revelações, como a de Roberto sobre a prótese da perna, dada a Nelson Motta, roteirista da série sobre a vida do músico, ainda a ser feita.

O resultado desse trabalho é um livro com casos mais delineados e mais voz para os profissionais que trabalharam com o cantor na gravação de seus LPs. — Uma das grandes falhas da produção do Roberto Carlos é a dos discos sem ficha técnica. Quem foram os produtores, quem toca o quê? Quem fez a foto de capa? E mesmo os compositores, você não sabe quem são exatamente essas pessoas. Eu queria falar com o maior número delas que fosse possível — garante o autor.

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Professor da cadeira de Comunicação e música popular brasileira na PUC-Rio e de História na Faetec, Paulo Cesar de Araújo aproveita “Outra vez” para defender novas teses sobre Roberto Carlos. Uma delas é a de que o cantor de 80 anos só se tornaria quem é depois de formatar, com Erasmo, em 1965, em “Não quero ver você triste”, o que seria conhecido como “a canção do Roberto”: um grande amálgama do legado de seus artistas-formadores João Gilberto (a bossa), Anísio Silva (a canção muito romântica brasileira — também conhecida como brega) e Elvis Presley (o rock).

Outra defesa de Paulo Cesar é a de que Roberto seria “um artista antenado com o que há de mais moderno na música” — o cara que antecipou o uso do órgão no rock mundial (ao acolher uma experiência do pianista Lafayette) e que batalhou para acrescentar um sotaque de soul à sua produção — Aqui no Brasil ele não ia a shows, mas lá fora estava indo. Roberto viu a soul music no Teatro Apollo, em Nova York, e estava ligado nos Bee Gees em 1975, bem antes de eles voltarem com tudo. Ele ouvia os discos antes de serem uma febre mundial.

Uma vez encerrado o ciclo de Roberto Carlos, com o lançamento do volume 2 de “Outra vez”, projetos não faltarão ao escritor de 59 anos, a quem alguns acusam de nutrir uma obsessão pelo Rei. — Tenho um livro sobre a história moderna da MPB, que é tema da minha aula na PUC, a música a partir de João Gilberto. A minha pesquisa é muito mais ampla do que parece. Ao mesmo tempo em que estava pesquisando para o Roberto eu estava entrevistando Caetano, Chico Buarque, Djavan, Milton Nascimento, João Gilberto... Entrevistei a música brasileira toda e 99% desse material não usei ainda — revela Paulo Cesar, que em 2022 também lança a edição comemorativa de 20 anos de “Eu não sou cachorro, não”, livro pioneiro sobre a relação entre os artistas do brega e a ditadura militar. — E tenho planos para um livro sobre a experiência do brasileiro de ir ao cinema e outro sobre futebol, com as entrevistas que fiz com jogadores das Copas de 1930 a 1986.

“Roberto Carlos outra vez - Vol. 1”

Autor: Paulo Cesar de Araújo.

Editora: Record.

Páginas: 928.

Preço: 94,90.

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