O que teriam a ver Sergio Reis e Wilson Simonal? São dois personagens da música brasileira, da mesma geração, com trajetórias muito diferentes. No entanto, suas vidas parecem mais próximas do que nunca.
Para as gerações que não o conhecem, Simonal foi um dos cantores brasileiros mais famosos dos anos 60, um dos primeiros artistas nacionais a fazer shows em estádios lotados. Inventou gênero musical (a pilantragem), criou gírias, ditou moda. Um negro de sucesso que namorava loiras e andava de Mercedes. Foi para o México na Copa de 70 como embaixador da cultura brasileira, ganhou até a chave da cidade de Guadalajara. A partir de 1971, caiu num ostracismo gradual por causa do vazamento de um crime comum: desconfiado de que estava sendo roubado por seu contador, chamou dois amigos do DOPS, a temida polícia política da ditadura, e mandou lhe dar uma “prensa” (leia-se tortura).
Era época da repressão radical, e parte da sociedade achou que era hora de contra-atacar: Simonal ganhou a fama de dedo-duro do regime, afinal ele havia dedurado o contador. O caso foi para julgamento: Simonal se surpreendeu com a independência do judiciário, visto que, como ele disse em juízo, “sempre esteve ao lado dos homens”. Acabou abandonado “pelos homens” e pelas esquerdas, que tinham sido fundamentais para sua ascensão inicial como cantor de MPB. Foi condenado judicialmente e ao ostracismo da cultura nacional por 40 anos.
Da Jovem Guarda a caipira autêntico
Sergio Reis, um cantor one-hit-wonder da Jovem Guarda (mas que grande sucesso foi “Coração de Papel”!), tornou-se a partir de 1973 um artista associado à matriz caipira da música rural de origem paulista. Abandonando gradualmente a guitarra, a bateria e as roupas urbanas, Sergio Reis foi construindo uma carreira sólida na música rural, associando-se à noção de “autenticidade”.
Gravou a música “Menino da porteira” e o filme homônimo. Tinha livre fluxo em programas como o Som Brasil, da Globo, capitaneado pelo intransigente Rolando Boldrin. Participou de novelas como Pantanal, Ana Raio e Zé Trovão na extinta TV Manchete. Ele ajudou a incrementar a oposição entre caipiras (aqueles que queriam adubar a tradição) e o sertanejos (os que queriam modernizar o som rural).
Você viu?
Até a virada dos anos 90, a música sertaneja ainda não ocupava espaços mais nobres da TV. Duvida? Pois acredite: na trilha sonora de Pantanal, não há uma música sertaneja sequer, isso em plena nacionalização do gênero, entre sucessos como “Entre tapas e beijos”, “Evidências” e “É o amor”. Na trilha de Pantanal só há espaço para a MPB (nomes como Ivan Lins, Simone, Sá & Guarabira, João Bosco, Maria Bethânia, Caetano Veloso e até o saxofonista Leo Gandelman) ou artistas caipiras (como o próprio Sergio Reis, mas também Adauto Santos, Marcus Viana e Renato Teixeira). Tudo mudaria com Rei do Gado, mas só cinco anos depois.
Entrada na politica
O tempo passou, e eis que o caipira Sergio Reis adentra a política a partir de 2010, sempre por partidos de direita. Tudo bem, ser de direita não é crime, e Serjão já havia demonstrado civilidade: em 2004, ele havia visitado o então presidente Lula e o presenteado com um DVD. Simpático com o petista, na época o cantor falou que Lula era “o último suspiro do pobre”, como reportou O GLOBO. Dois anos antes Lula fora eleito usando como jingle uma canção de Zezé Di Camargo, “Meu país”, uma bonita balada que fala de reforma agrária. Eleito em 2015, Serjão foi se radicalizando junto com parte do Brasil, tornando-se cada vez mais intolerante. Em 2021, defendeu abertamente um golpe de Estado.
Assim como Simonal ficou associado ao regime ditatorial, Sergio Reis, com a repercussão da gravação vazada nos últimos dias, ficou associado a um governo de intenções golpistas. Mesmo antes da acusação de “dedo-duro” Simonal já era visto como alguém “das direitas”. Antes dessa celeuma golpista, Sergio Reis também já era visto como alguém à direita do espectro político. Era sabido que ele era bolsonarista, assim como Zezé, Eduardo Costa e tantos outros. Mas não foram só os sertanejos que se seduziram por Bolsonaro. Mesmo na MPB, quem não se lembra das declarações esperançosas de Djavan e do apoio explícito de Nana Caymmi em 2018? Mas Sérgio Reis virou o bode ideal. E ao se tornar um bode, foi transformado em “sertanejo”, pois na lógica estereotipada de analisar música no Brasil, os sertanejos são sempre necessariamente reacionários.
Serjão merece responder na justiça por suas declarações. Com golpistas, não há o que negociar. E quanto a nós? Apontar o dedo é sempre um ato duplo: um dedo mira o alvo e quatro miram a nós mesmos. Vamos transformar o cantor de 81 anos num bode expiatório? Simonalizaremos Sergio Reis? Apagaremos Serjão da história por 40 anos, como fizemos com Simonal? Espero que não. E espero que não simonalizemos a música sertaneja como um todo. Até porque sempre existem as brechas: Marilia Mendonça, a mais famosa artista sertaneja na atualidade, declarou-se pelo “Ele não” em 2018. O menino bolsominion da porteira não contava com essa menina “infiel”.
* Gustavo Alonso é Professor do Curso de Comunicação (graduação) e da Pós-Graduação em Música
da Universidade Federal de Pernambuco (PPGM-UFPE), além de
Mestre e Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Autor dos livros "Simonal: quem não tem swing morre com a boca cheia de formiga" (Record, 2011) & "Cowboys do asfalto: música sertaneja e modernização brasileira (Civilização Brasileira, 2015)