Anne Mota em cena do filme Alice Júnior
Divulgação/Alice Jr.
Anne Mota em cena do filme Alice Júnior

Em cartaz nos cinemas que começaram a reabrir após a quarentena, o filme Alice Júnior – que também já chegou na Netflix, YouTube, Oi Play, Looke, iTunes Store e Google Play. A trama conta a história de uma menina trans que está passando pela adolescência.

A comédia adolescente do tipo High School apresenta com leveza os dilemas de uma adolescente comum, como o primeiro beijo, relacionando às dificuldades que uma pessoa trans costuma viver. Com 16 prêmios e outras 27 seleções/indicações em festivais brasileiros e internacionais, Alice Júnior esteve entre os 18 pré-candidatos para indicação de filme brasileiro ao Oscar .

Tudo isso tendo como protagonista a atriz Anne Mota, 22, que também é uma mulher trans . Conversamos com Anne para saber da relação dela com o filme e a personagem, sobre a carreira dela, as premiações e os sonhos para o futuro.



Como e quando decidiu ser atriz?
Eu sempre tive interesse em estar no meio artístico. Era um interesse que surgia de qualquer forma, desde modelar, desfilar, tirar foto até ser cantora, atriz, tudo. Já quis fazer faculdade de dança, já fiz aula de canto quando criança. Eu também já tinha feito [curso de] teatro quando criança. Digamos que eu sempre tive uma veia artística muito forte dentro de mim. Eu fazia apresentações de teatrinho, montava uma peça sozinha e reunia a minha família para assistirem.

Em 2014, assim que voltei do intercâmbio que fiz para os Estados Unidos, ainda menor de idade, com 16 anos, eu fui para uma agência de modelos aqui em Recife. Eles falaram que eu não tenho altura para ser modelo, mas que eu tinha o perfil para ser uma grande estrela de cinema. O cara que me atendeu falou exatamente isso. Um ano depois, vi um post no Facebook, de seleção para Alice Júnior para atrizes trans adolescentes. Eles estavam procurando no Sul e no Sudeste, mas como chegou até mim, pensei: por que não?! Na época, eu só tinha o meu canal do YouTube como experiência, mas entrei em contato com eles, mandei vídeos e fotos e foi isso.

E a seleção para o papel de Alice Júnior, como foi?
Eles enviaram alguns trechos do roteiro para eu decorar, gravar e mandar de volta. A gente manteve contato por um tempo até que em julho eles marcaram de eu ir para Curitiba. E eu cheguei lá com a minha mãe, porque eu ainda era menor de idade, e iniciei o meu primeiro processo de preparação de elenco, já para ser Alice. Eu digo que fui escolhida lá em Curitiba para interpretar Alice, mas o Luiz Bertazo, roteirista, e o Gil Baroni, diretor do filme, falam que foi amor à primeira vista, desde o momento em que me viram nos primeiros vídeos que enviei.



Você chegou a imaginar que o primeiro filme no qual você iria atuar teria uma representatividade tão grande para a comunidade trans?
Esse foi o meu primeiro grande trabalho, mas eu sabia do roteiro, eu sabia que tinha uma grande força de representatividade. Então eu sabia que, quando o filme saísse, sendo um sucesso aclamado pela crítica ou não, eu sempre consideraria ele um grande filme, com uma grande representatividade dentro dele.

Uma pessoa trans, que sou eu, com outras pessoas trans ali dentro do filme, que fala sobre a história da transgeneridade de Alice, que é uma garota adolescente trans, de forma muito empoderada, leve, delicada e muito mais. Eu já sabia disso, mas eu não esperava que fosse o que está sendo hoje, todo esse feedback que a gente está recebendo, é tudo muito novo. É muito legal, claro, mas eu não sabia que a recepção seria desse modo, principalmente depois que ele entrou na Netflix.

Depois que o filme entrou no catálogo da Netflix esse alcance e feedback do público que você fala cresceu muito?
Definitivamente! Começamos a divulgação do filme no ano passado pelos festivais nacionais. Percorremos quase o Brasil inteiro. Foi o que eu chamo de “Turnê Alice Júnior”. Ganhamos vários prêmios. Neste ano, começamos a turnê pelos festivais internacionais. E logo depois, entramos na Netflix. E, do dia para a noite, eu já estava ganhando milhares de seguidores.

E sobre essa realidade de muitas premiações. O que você sente sobre ela?
Tudo aconteceu sem que eu esperasse. Eu realmente não sabia que seria assim. O primeiro festival que a gente participou foi o de Vitória e a gente não foi premiado em nada. Então eu pensei, bom, é isso, a gente vai para mais alguns festivais, o filme vai ser exibido, vai ter um pessoal que vai gostar, mas bom é isso.

Só que fomos para vários festivais, não só alguns poucos, e começamos a ganhar vários prêmios. A ficha começou a cair quando o público jovem começou a aparecer nos festivais. Na mostra de São Paulo, o grupo Mães Pela Diversidade levou a criançada LGBT para assistir ao filme. Eles ficaram bobos com o filme. Teve uma garota trans que chorava emocionada para falar comigo.

Tem sido uma recepção incrível. Mas eu tanto não esperava que quando ganhei o prêmio de melhor atriz no Festival de Brasília eu não tinha um discurso pronto para aquilo. Eu não tinha colocado na cabeça que poderia ganhar.



Você também chegou a ser indicada neste ano em outros prêmios, que não tinha uma relação direta com o cinema, como o prêmio de Influencer do ano, pela Toda Teen.
O prêmio da Toda Teen foi uma grande surpresa, mas foi tudo para mim. Eu sempre fui uma pessoas trans e, quando criança, o meu pai assinava revistas para mim, mas eram tipo a Recreio, revistas consideradas de meninos.

Deixo esse consideradas entre várias aspas, porque todo cada um gosta da revista que traz o que te interessa. Mas eu não gostava daqueles assuntos, não me interessava. O que chamava a minha atenção era a Toda Teen, eram as revistas falando sobre os artistas, os boys, as bandas, conselhos amorosos, que falavam de moda. Era o que eu queria ler. E, de repente, eu dei uma entrevista para a Toda Teen e fui indicada como influenciadora, ainda por cima ao lado de artistas maravilhosas, a Manu Gavassi e a Maisa.

Para quem sabe, eu sou superfã da Manu Gavassi, tenho foto com ela e tudo. Então, se a Manu viu aquela lista, ela sabe quem eu sou. Eu tô superfeliz. Não sei se eu ganho, mas eu tenho os meus transtornadinhos, que é o nome que dei para meu fã-clube, e os Alicers , que são os fãs de Alice Junior, e eles estão votando. A ficha vai caindo aos pouquinhos.

Já que você voltou a falar de Alice Júnior, gostaria de saber quais são as semelhanças entre Anne e Alice.
Alice é uma influencer, ela tem um canal no YouTube e participou de reality show de moda e ficou famosa por ele. E, de repente, e também tô sendo indicada a influencer do ano. Isso é muito legal.

Assim como ela, eu também tenho o meu canal, que é o Transtornada, onde eu publico vídeos semanais nos quais eu falo sobre a causa trans. E, assim como filme, que é bem leve, eu também falo nos meus vídeos de maneira bem leve, pra que as pessoas cheguem lá e realmente entendam, com exemplos mais fáceis. É uma fala bem compreensiva para todos.

Eu também falo da minha pessoal, minhas experiências, como o fato de eu ter transicionado no intercâmbio. E ainda algumas curiosidades de Alice Júnior. Além disso, agumas semelhanças de vida. Alice e eu tivemos um processo de aceitação familiar mais fácil, nós duas também temos condições financeiras mais estáveis.

Imagem do set de gravação do filme, com Anne (Alice Jr.), ao lado do diretor, Gil Baroni, e dos colegas e cena Surya Amitrano e Matheus Moura
Divulgação/Alice Jr.
Imagem do set de gravação do filme, com Anne (Alice Jr.), ao lado do diretor, Gil Baroni, e dos colegas e cena Surya Amitrano e Matheus Moura



E quais as principais diferenças entre vocês duas?
São duas. Alice tem o pai como a pessoas mais próxima, que dá apoio, carinho, atenção e tudo o mais. E a pessoa mais próxima de mim não é o meu pai, é a minha mãe, é a minha família por parte de mãe mesmo.

Eu tenho até contato com o meu pai, obviamente. Passamos um tempo sem nos falar por causa da minha transgeneridade, até falo sobre isso em alguns vídeos no meu canal. Mas as coisas mudam, melhoram com o tempo, e a nossa relação também mudou e melhorou. Mas mesmo assim as pessoas mais próximas de mim são da minha família por parte de mãe.

A segunda diferença é o fato de Alice ser uma garota super empoderada. Ela enfrenta diversas coisas como inseguranças, preconceitos, agressões verbais. Ela sabe lidar com isso de cabeça erguida, passando por cima, acho que eu ainda tenho minhas dificuldades em me empoderar da mesma forma que Alice. Questões minhas, de empoderamento, aceitação do meu corpo, lidar com minhas inseguranças. Acho que Alice consegue ser mais cheia de si do que eu.

Ainda sobre o filme, quem participa dele também é a Gretchen, que é conhecida como a rainha dos memes, mas também pela militância pela causa trans, que faz junto ao filho dela, o Thammy Miranda. Como foi interagir com ela?
A gente foi gravar os memes em apenas uma diária. Fomos com parte da produção para a casa dela, aqui em Pernambuco. Mas foi bem tranquilo. Foi tudo bem rápido, na verdade. Em um take ela já conseguia se virar.

Ela é incrível, um amor e superprofissional. A gente chegou e ela já falou o que tinha que fazer. Era para mudar de roupa, tá bom, foi lá rapidinho mudar. É tipo pa, pum, sabe?! Não tivemos muito tempo de conversar e nem nada. Mas acho ela incrível.

Tivemos mais tempo e ficamos mais próximas numa live que fizemos juntas, para o Canal Brasil do que nesse dia de gravação. Nessa live a gente conversou bastante e ela mandou beijos, disse que adorou me conhecer, que eu era linda. Foi tudo incrível!



E além dela, como foi a sua interação com o restante da equipe? Correu tudo bem no processo de gravação?
Além de atriz protagonista, eu sou produtora associada do filme. Então, eu sempre participei intensamente de todas as decisões sobre Alice Júnior, tanto no processo de gravação, quanto na pós-produção.

Por exemplo, na escolha do elenco, a gente fazia três perguntas: “o que é transfobia? O que é feminismo? Como foi o seu primeiro beijo?” A gente não queria pessoas que estivessem lá por dinheiro ou fama. Queríamos pessoas que realmente entendem a força que o filme passa, a mensagem do filme. Então, todos que estavam lá sabiam a importância desse filme.

A produção sempre esteve aberta a me ouvir. Nem todos eram totalmente desconstruídos, teve algumas falas não intencionadas, mas preconceituosas, e eu sempre corrigi. Em nenhum momento me senti receosa ou com vergonha de corrigir. Aliás, às vezes, fui incisiva até demais. Mas isso fez com sempre fosse tudo muito tranquilo.

E daqui para a frente, quais as expectativas para a carreira? Já tem algum projeto novo ou em vista?
Eu estou trabalhando muito com o meu canal do YouTube, com vídeos semanais. É um projeto que eu tenho para a minha carreira. Mas, recentemente, eu participei da comissão oficial da seleção de longas do 53º Festival de Brasília.

No ano passado, ganhei o prêmio de melhor atriz nele, que é um dos maiores festivais de cinema e mais antigos do Brasil, também ganhamos outros prêmios com Alice Júnior. Neste ano eu voltei para o festival como uma das julgadoras, junto com outro pessoal, para decidir os filmes que vão estar presentes em 2020, que vai passar no Canal Brasil.

Passamos o mês de novembro inteiro analisando os filmes para selecionar os seis que vão passar. Assistimos mais de 130 filmes. Foi um grande trabalho e estou super-honrada por ter sido convidada para participar dessa comissão.

Mas você pretende continuar atuando?
Não, eu vou fazer Medicina. Aquelas... Tô brincando [risos]. Claro que pretendo! Antes da pandemia, fiz uns testes para alguns projetos audiovisuais, mas logo depois começou a quarentena e, até agora, não tive nenhum feedback. Até agora, as produções desses testes que eu fiz não voltaram a encaminhar seus projetos. Então, eu não sei o que vai acontecer. Estou fazendo uma faculdade de Teatro aqui em Recife, com aulas todos os dias. A ideia é já sair de lá com meu DRT.

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