A imagem de Bebel Gilberto aparece no Zoom emoldurada por uma proteção de tela cheia de desenhos de cachorro. Desde junho, a cantora é “mãe” de Ella, como se define, uma shih tzu de quatro meses. A bichinha pula no colo quando a dona conta que a chegada da companheira veio curar um trauma de infância. Menina, Bebel tinha um poddle. Um dia, foi dormir fora de casa e, quando voltou, sua mãe, a cantora Miúcha , tinha doado o cão.
O amor de Ella também veio aplacar outros vazios de Bebel, que ainda processa as perdas que viveu nos últimos tempos. Primeiro, foi o melhor amigo, o compositor Mario Vaz de Mello, que morreu enquanto falava com ela ao telefone. Depois, a mãe. Em seguida, o pai, João Gilberto , cuja partida completou um ano no mês passado.
A jornada pela dor refletiu na escolha das canções do disco que ela lança no dia 21, 40 anos após estrear ao lado do pai (cantando “Chega de saudade”, aos 14 anos, em um especial de TV) e duas décadas após seu primeiro álbum (“Tanto tempo”, que vendeu quase três milhões de cópias). Batizado de “Agora”, o novo trabalho, que sai pela gravadora belga [Pias] Recordings, é o mais íntimo e confessional da carreira dela. Traz até uma música dedicada ao pai, “O que não foi dito”.
Mas é a leveza que o conduz. A maioria das 11 canções segue o estilo suave e sensual de Bebel, cheio de improviso vocal. Ainda pequena, ela captava as melodias de ouvido sem ligar para a letra, já que a música entrou em sua vida bem antes da alfabetização. Muito do que procurou imprimir no disco, ela cantarolava para que o produtor Thomas Bartlett (responsável pelo som de Norah Jones e Florence + The Machine) fizesse as bases.
Foram três anos de dedicação ao álbum. Processo que começou em 2017, durante uma viagem a Puglia, na Itália, onde Bebel compôs várias canções. E continuou em muitos encontros regados a comida vegetariana, vinhos e otras cositas más no estúdio de Bartlett, em Nova York. Ali, a parceria criativa flui a ponto de os dois assinarem juntos todas as músicas do disco (há também outros parceiros, como Mart’nália, na canção “Na cara”). Há faixas que nasceram das melodias da cantora e músicas que começaram com esboços sonoros de Bartlett com vocais de Bebel.
Nesta entrevista, ela diz viver um momento de libertação aos 54 anos, apresenta sua versão para a novela familiar em torno do legado do compositor e lembra a relação com o pai."Só papai atendia às minhas ligações de madrugada", emociona-se.
“Agora” tem a atmosfera e as texturas sonoras do seu disco “Tanto tempo”. Ele foi mesmo uma referência?
Eles têm a ver, sim. Eu e Thomas fazíamos altas terapias antes de gravar. Falávamos desde “será que vai ser sucesso como o ‘Tanto tempo’?” até “não transo há milhões de anos” (risos). Estávamos os dois encalhados e isso nos aproximou. Virei assunto da terapia dele, que se questionava por estar remetendo esse trabalho ao disco que tinha me deixado famosa. Chegou à conclusão de que o motivo ia além da sonoridade. Era porque ele tinha interesse em mim como pessoa, na Bebel compositora.
A maioria das canções foi feita entre 2017 e 2019. De lá para cá, você sofreu perdas. De que forma a dor se refletiu no disco?
A música “O que não foi dito”, por exemplo, foi feita para o papai quando eu ainda não tinha ganhado a interdição definitiva (em 2017, a cantora conseguiu interditar judicialmente o pai, então com 86 anos). Eu estava megaculpada, triste, tinha saído uma matéria horrível sobre ele numa revista. Eu ia para o estúdio com aquilo na cabeça. Como não falar disso? Não conseguia dizer a ele que faria por ele. E tinha gente que falava: “ela vai te roubar”. Como assim? Então, saiu a letra falando que eu queria cuidar dele, desde a saúde até organizar as coisas, tipo “ah, o empresário nunca recolheu direito da EMI?”. Tentei fazer isso...
Como está você “agora”, essa palavra que intitula o disco?
Mais pé no chão. Não sei como sobrevivi. É como diz uma personagem da série “A rainha do Sul”. “Suck it in, breathe and keep living” (engula, respire e continue vivendo). A única chance de sobreviver era puxar a tristeza do fundo e seguir, não dava para ficar chorando (Bebel enxuga as lágrimas). Mas a pandemia me fez parar, talvez eu precisasse. Por que eu vou que vou, né? Enterra a mãe, enterra o pai, faz música, grava... Haja coração! Tenho formas de relaxar, tomo uma... Mas vontade de aglomerar, saudade do Jobi, do Baixo Gávea? Isso não rola.
Você viveu os últimos momentos da sua mãe com ela, mas, quando seu pai morreu, estava em turnê. Como foi receber a notícia?
Eu já estava grilada, tenho uma mediunidade forte. A barra estava pesada, ele tinha que fazer o maldito exame psicológico (perícia médica que determinaria o estado de saúde dele no processo de interdição). Para papai sair de casa, tinha que começar a conversa um mês antes. Infelizmente, eu não estava, e o que chegava para ele era: “tem que fazer o exame porque a Bebel está pedindo”. Não! A Justiça pediu, porque nossos advogados queriam que eu tivesse a curatela eterna. Com ela, eu poderia fazer coisas boas para o trabalho dele, como tirar documentos para entidades arrecadadoras de direitos autorais. Depois do exame, não consegui mais falar com ele. Estava que nem um gatinho, não queria comer, falar...
Mas onde estava quando soube da morte do seu pai?
No táxi para o estúdio. A médica ligou dizendo que ele tinha morrido. Gritei “não!”. Quando cheguei ao aeroporto, quase não me deixaram embarcar, estava fora de mim.
Como processou tudo?
Não processei. Saio com a Ella e falo: “Olha a loja em que a vovó ia”, “tá tocando a música que o vovô gostava”. Quando ela late, pergunto “Que foi? É vovó ou vovô?” (risos)
“Agora” simboliza uma certa libertação? Deve ser chato quando só perguntam sobre seu pai e sobre as brigas de família...
Sobre as brigas e também quando pessoas vêm se lamentar. Mas o mais importante é mostrar quem eu sou. Às vezes, passo dos limites, mas foda-se, sou isso! Escorrego, fico cansada, desafino, falo besteira. Todo mundo fala quando bebe. Cansei de ouvir que tenho que ser isso ou aquilo. Não preciso sair lambendo o chão, mas vou ser verdadeira. E a Bebel verdadeira é fofa, mas é irônica e um pouco maluca.
É preciso ser quem se é com toda potência para ser feliz...
Sem dúvida. Ter perdido o papai e a mamãe ajudou. Tanto que tomei várias decisões, como a de não ser a inventariante (do processo de espólio de João Gilberto). Não aguento mais brigar! Quando ele era vivo, era uma obrigação. Não dormia sem saber se ele tinha jantado ou avisar à cuidadora que não adiantava esconder o remédio na comida porque ele percebia. O que me dói é ser questionada. Como eu não ia cuidar de um senhor que está nas minhas mãos? Como colocaria a cabeça no travesseiro? Eu estava cuidando dele e cagando para o dinheiro. Além do mais, calcula-se que papai devia mais que R$ 20 milhões, posso até herdar essa dívida!
O que achou de sua irmã Luisa (filha de Cláudia Faissol) pedir para ser inventariante?
Ah, bicho, ela tem direito de fazer o que quer. Temos uma relação linda. Infelizmente, meu irmão (o músico João Marcelo Gilberto, filho de Astrud Gilberto) escolheu um caminho diferente. Mas a gente não teve tanta intimidade. Também não tive com Lulu, mas a vi nascer. Tive um ciumezinho no início, mas ela é um pedaço de mim. Queria que meu irmão me aceitasse, entendesse que sou do bem, que jamais roubaria alguém.
Maria do Céu Harris pleiteia na Justiça o reconhecimento da união estável com João. Você a reconhece como tal?
Maria do Céu sempre foi um problema do meu pai. Ela nunca buscou a harmonia. Enquanto estava presente, eu não estava. No final da vida dele, ela retornou e foi muito difícil por não reconhecer o quanto doente ele estava. Sobre o pleito dela, prefiro não comentar.
Não tem medo que as brigas familiares emperrem a obra do seu pai?
A doutora Silvia (Gandelman, advogada indicada pelo Ministério Público para ser a inventariante) é especialista. A obra de João Gilberto requer sofisticação, está abandonada há tempos. Emperrada pela questão da EMI, da péssima maneira com que vinha sendo representada. O advogado Caio Mariano fez um levantamento de direitos autorais maravilhoso quando eu era curadora. Antes de ele morrer, a gente estava com um disco praticamente original, que seria lançado agora por uma plataforma digital. Um luxo, papai no auge, cantando que nem pássaro nos anos 1980, quatro músicas que nunca haviam sido gravadas, como “Ave Maria dos seus andores”. Havia a proposta de um documentário do Rodrigo Teixeira. A Columbia University queria fazer museu com a história dele. Todo mundo poderia tirar dúvidas sobre os acordes. Quero fazer tudo isso e não preciso ser inventariante. Podemos ajudar a doutora Silvia a administrar de forma frutífera em vez de embarreirar. Quero que a obra do papai seja ouvida, estudada, espalhada.
Zuza Homem de Mello está escrevendo a biografia de João Gilberto. O que acha?
Fico contente com a contribuição do Zuza pela memória do papai. Mas fico surpresa por ele não ter dito que o ajudei com as informações.
Que memória tem de João como pai?
Só papai atendia às minhas ligações de madrugada. Mamãe nunca atendia, ninguém atendia.
Você trocou Nova York, onde viveu por 30 anos, pelo Rio. O que ganhou e o que perdeu?
Ganhei minha filha, Ella. Perdi a liberdade que tinha, porque o Rio é uma caretice.
Continua achando que São Paulo te trata melhor do que o Rio?
Depois das lives da Teresa Cristina, vi que o Rio gosta muito de mim. Aliás, depois delas, muitas coisas foram liberadas, como ser quem se é, de pijama ou arrumada. Poder cantar sem acompanhamento, esquecer a letra... Acho isso ótimo.