Você se lembra desses cabelos? Eles continuam os mesmos, mas os pés, quanta diferença... Lá se vão mais de 30 anos desde que cantor e compositor baiano Luiz Caldas surgiu descalço, brinco de pena na orelha cantando "Fricote", canção que ficou conhecida como marco zero do axé music.
"Sou igual ao Super-Homem: se não estiver descalço, ninguém me reconhece", brinca o autor de hits como "Ajayô" e "O beijo", que passou a infância arrancando os calçados que a mãe lhe colocava.
Certa vez, no auge de seu sucesso (estima-se que só nos anos 1980 tenha vendido cerca de três milhões de cópias), embarcou sem sapatos rumo a shows agendados no inverno novaiorquino. Quase congelou. De lá prá cá, muita coisa mudou. Hoje, aos 58 anos, o pai do axé prefere vestir botas e parou de cantar aquela canção que caiu em desgraça por causa do refrão ("nega do cabelo duro/ que não gosta de pentear"), considerado racista por muitos.
Pai de trê filhos e casado há 45 anos, o artista, que se tornou miltiinstrumentista tocando em conjuntos de bailes dos 7 aos 16 anos, prepara uma ópera e está indicado ao Grammy Latino 2021 com o álbum "Sambadeiras". Também dá seguimento ao projeto que começou em 2013 de lançar um disco por mês. Já são 116 álbuns (com parceiros como Seu Jorge, Zeca Baleiro, Sandra de Sá e Chico Cesar), de gêneros que vão do do metal ao afro, passando pela salsa, pop e sertanejo e somam mais de mil músicas.
No próximo dia 29, ele lança "Playlista brasileira 1" (Deck Disk), álbum de regravações de algumas de suas canções favoritas. Tudo comçeou no início na quarentena quando, sem poder fazer shows, passou a postar vídeos tocando canções como "Deslizes", A força do amor" , Caçador de mim, a Lua e eu, entre outras.
Qual foi o critério para a escolhas das canções que compõem o novo disco?
Foi por gosto mesmo. Sou o envelope que vai levar a encomenda, tenho que aceitar (risos). Desliguei o senso crítico e senti o que a canção provoca. Você pode fazer uma canção de mil acordes e não despertar nada em ninguém e outra com um acorde só, como é o caso de "Sossego", do Tim Maia, que é toda em dó maior, mas ninguém fica parado. Respeito a original, mas dou a minha cara. Canto muito grave, basicamente nenhuma está no tom original. Venho do baile e lá tinha que copiar de Stevie Wonder a Martinho da Vila. Isso moldou minha forma de tratar com a música, não tenho preconceitos musical e consigo diferenciar o caça níquel do que é feito com feito emoção.
Não foi fácil fazer as pessoas ouvirem sua música no começo da sua carreira, né?
Ralei muito. Eu colava cartazes na rua, pegava cada pedaço do som emprestado por que não tinha estrutura de show na Bahia. Me apresentava num palco que ficava em cima de dois cavaletes em um circo. Comecei a gravar e lutava para colocar as músicas na rádio. Eram os anos 1980 e o Brasil escutava música do Rio São Paulo, americana ou europeia. Música nordestina, regional, não tinha vez. Eu mudei isso. Já que queriam música americana, fiz uma versão de "Miss Robinson", do Paul Simon, com tempero baiano. Começou a tocar nas rádios, e as pessoas começaram a ligar paara pedir. Sabe aquela fila no orelhão que aparece no filme do Zezé di Camargo? Aconteceu comigo. Em menos de um mês eu estava no primeiro lugar.
Isso depois de ter escutado muitos nãos de gravadoras...
Nessa época, em 1982, fundei o Bloco Beijo, fiz uma música e lancei meu primeiro compacto com o nome de Luiz Caldas e Acordes Verdes. Fui até o Rio com o disco embaixo do braço, batendo de gravadarora em gravadora. Teve um famoso diretor que disse: "Mais um baiano aqui, não". Aí voltei e fui fazer sucesso na minha terra. Pensei: "Vão ter que ir atrás de mim". Ou seja, aquilo me serviu como um impulso.
Sempre tive certeza do meu caminho. Quando lancei o disco "Magia", que tinha "Fricote", ganhei disco de ouro na Bahia, e as gravadoras ficaram loucas para ter um contrato comigo. Aí, o Roberto Santana, que era responsável pelo tropicalismo, Bethânia, Fafá de Belém, me levou para a Polygram, para o Rio. Aí foi "Fantástico", "Chacrinha".
Mas você ficou conhecido mais pelo axé, pouca gente sabe que você é um multiinstrumentista, que o violão clássico é seu principal instrumento... Se ressente de ter ficado restrito a um nicho? Como avalia a sua trajetória?
Como a melhor coisa que fiz na vida, porque, enquanto muitos artistas fazem a mesma coisa e não têm como surpreender, eu tenho muitas cartas guardadas na manga, instrumentos que as pessoas nem sabem que eu toco. Naquele momento em que eu estava aparecendo, nos anos 1980, modo mundo tinha muito estilo, Magal era um cara único, Legião tinha um rock diferente do Capital, dos Titãs, era um caldeirão maravilhoso. Todo mundo chutando o balde após a ditadura, as latas (de maconha) chegando pelo mar, eu precisava ter uma coisa que fosse minha, daí nasceu o axé music.
Eu podia chegar com uma guitarra no pescoço, mas me tiraria a movimentação corporal, e eu estava apresentando uma música de dança forte para as pessoas pularem. Não era o momento para virtuosismo. Acho que essa coisa de não ter um ego muito agigantado por ser multiinstumentista acabou me ajudando a construir minha carreira e, de quebra, modificar o carnaval de Salvador.
Porque existe o carnaval de Salvador antes e depois de Moraes (Moreira) e também antes e depois de Luiz Caldas. Abri um mercado, um leque para toda uma cadeia de profissionais daqui. Foi meu disco de ouro que fez isso. Minha faixa de venda de disco era de 600 mil discos.
E como descobriu, inventou o axé music?
Você não descobre, só quer fazer algo diferente. A ideia era me diferenciar do que estava rolando. Sou guitarrista e venho de uma terra de grandes monstros do instrumento. Armandinho, Pepeu, Luis Brasil... Fiquei sendo um cara único. O axé music nasce de uma matéria do jornalista Agamenon Brito, que era roqueiro e, assim como todos eles, tinha verdadeira aversão ao axé. Ele me chamava Michael Jackson tupiniquim. Numa matéria ele disse: "lá vem o Michael Jackson tupiniquim com seu axé music". Foi daí para o mundo.
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Em que mais você acha que você surpreende as pessoas?
O disco indicado ao Grammy, por exemplo, muita gente jamais iria imaginar que eu fosse indicado num estilo do música tão peculiar, que é a o do recôncavo. Não é qualquer um que faz, tem que ter um estudo, respeito às formas de tocar. O mestre Roberto Mendes diz que violão de chula não é dedilhado, é pinicado. Isso faz toda a diferença, porque tranforma um instrumento harmônico em percussão. Muita gente não sabe que toco violão nesse estilo, porque é como pegar um violino e tirar som de trompete. Fiz um estudo grande sobre a parte literária, a história. Isso é uma surpresa grande para quem não acompanha. Muita gente não mergulha nas coisas, não tem informação. Olha e fala "ah, é aquele cara da nega do cabelo duro". Aí, passa na internet, me vê tcocando um clássico e a cabeça buga.
Acha que tem seu valor reconhecio ou que é um gênio incompreendido?
Acho que sim. Sou um cara que está na história da música brasileira. Com toda a humildade, eu sou Luiz Caldas. As pessoas conhecem. Muito gostam, outros desgostam, mas existo. E o melhor é que ainda vou fazer 60 anos, o que para os padrões atuais, é muito jovem. Na época que eu tinha 12 anos, quem tinha 40 era um coroa velho mesmo. As coisas mudaram, e eu me cuido legal, sou super saudável. Não como carne, não bebo. não fumo...
Não bebe nem fuma nada?
Só maconha, que me deixa tranquilo, totalmente diferente do que os leigos acham. Porque é uma planta, não considero droga. É uma hipocrisia gigante fazerem propaganda de álcool e condenarem a maconha. A pessoa que bebe fica agressiva. Nunca vi um maconheiro deitado na sarjeta.
Numa entrevista em 2015, você citou uma frase de Nietzsche: “Somente aquele que constrói o futuro tem o direito de julgar o passado” e, logo depois, emenda "Acho que as pessoas vão ter que se distanciar da minha imagem para me entender um dia". O que quis dizer?
Exatamente o que está acontecendo agora. As pessoas já não me olham como aquele cara que fez a axé music e só. O projeto de discos mensais, que é longo e ousado, alçou olhar das pessoas sobre mim a outro patamar. Não fui eu quem mudei, mas forma de as pessoas me enxergarem. Não tem como a pessoa passar impune. Em algum momento, vai escutar algo e se surpreender porque a diversidade é gigante. Pode pegar um disco meu em em espanhol, em inglês...
Você mudou um pouco o seu visual. Aque coisa mais estampada, os pés decalços, deam lugar a um estilo mais sóbrio, até meio metaleiro, com unha preta, bota. Resolveu ficar mais discreto? E como cuida do seu cabelo?
Nando Souza cuida do meu cabelo há 30 anos. Ele é meio cientista e sempre cria coisas interessantes. Agora criou uma escova gelada que trata onde está quebradinho. Tenho orgilho de ser cobaia dele, sempre dá certo. Sou de usar o que me dá vontade. Se quiser usar saia, uso. Ninguém permanece igual, tudo muda. Lembra que nos anos 80 tinha aquela ombreira que não passava na porta à la Renato Aragão? As pessoas achavam bonito. Tudo tem sua beleza, dependendo da época. Uma pessoa velha vai ser bonita se ela se portar com a idade dela, a beleza está no que você é e representa no momento.
O seu estilo andrógino fez muita gente destilar preconceito te chamando de gay? Isso te incomodou?
Sim. Muita gente falava isso e dava risada, não tinha nada contra. Sempre houve essa coisa de o ser humano achar que porque faz parte da maioria é um modelo e o outro, diferente, não é. Rio dessa igrnorância. Acho que a sociedade era até menos careta naquela época. A gente estava saindo de uma ditadura, vinha o colorido, a liberdade em poder falar algumas palavras. Eu ainda sofri um prego, minha música "Bervely hills" foi censurada. Fiquei puto. E foi uma música só, imagina um Chico, um Gil, um Caetano. Sofri um "prego", muitas pessoas sofrem não só esse tipo de arbitrariedade como na pele mesmo. Não canto mais "Fricote" em show. Porque a letra era daquela forma naquele momento e as pessoas curtiam. Mas as coisas mudam. O Mussum não existiria hoje. É aquela coisa de você respeitar a sociedade se quer fazer parte dela.
Como se sentiu quando "Fricote" foi acusada de ser racista?
Quem fez essa música virar sucesso foi o povo da Bahia, cuja maior parte é negra. Ofereço esse disco, está escrito lá, aos meus pais, minha cunhada e aos negros da Bahia. Se eu tivesse o intuito de sacanear... inclusive meu parceiro de compostição, Paulinho Camafeu, é negro, como se explica isso?
Existem várias músicas que falam desse universo e não cabem hoje. Se quer viver bem em uma sociedade é preciso respeitar as regras. Admiro essa geração que está colocando muitas coisas no eixo. Hoje, não canto "Fricote", acho desnecessário. Se tivesse só um sucesso, como muitos artistas, teria que cantá-la até morrer para me sustentar e sustentar minha família. Mas tenho muitos, são mais de 1000 só desse novo projeto.
Acho que "Fricote" já cumpriu o papel dela, de ser o elo com o que aconteceu, com essa corrente toda que chama axé music e que não é bem um estilo musical como samba, o rock, mas uma forma de fazer música, que faz um convênio com todos os estilos.
Mas quando veio a polêmica você disse que era preciso contextualizar e perguntou: "Vamos parar de cantar 'Cabeleira do Zezé?'. Muitos blocos do Rio pararam de cantá-la. Como enxerga a onda revisionista em cima de canções do passado?
Enxergo como um retrocesso, porque não se pode apagar a história. É tipo cancelar na internet. Não dá para deletar a história. O que agente pode é seguir em frente não cometendo os mesmos erros. Mas elas nos ajudam a entender as coisas. É o movimento da vida.
Se não dá para cantá-las e é um retrocesso apagá-las da história, qual é o lugar dessas músicas?
Além do saudosismo, elas vão ficar na história como exempslo de coisas que aconteceram. Não se pode falar de axé music, de Banda Eva, de Ivete Sangalo sem falar de "Fricote". Só existem eles porque existiu ela. Mas não há necessidade de cantar. Já que as coisas estão mudando, vamos em frente. Mas não vou apagar o que fiz, tenho o maior orgulho dela, mas posso me dar ao luxo de não cantá-la em público.
Mas você cantou no Globo de Ouro em homenagem ao axé em 2016...
A Flora (Gil, que assinava a produção do programa) veio aqui em casa com o Gil, e eu disse que faria o programa, mas não cantaria "Fricote". Aí, Gil falou: "Mas aí você vai fazer o programa ficar capenga, sem história. A música é sua, um grande sucesso, aconteceu e não tem nada demais. Cante". Se o pedido viesse do Caetano, que sempre me ajudou demais e tem todo um carinho por mim, talvez, eu não cantasse. Mas era o Gil pedindo, um cara negro. Se ele não viu nenhum problema de eu cantar essa canção...