Por que os papéis LGBT ainda incomodam tanto na TV?
Embora o papel do gay já exista há muitos anos na TV brasileira, somente nos últimos cinco anos o LGBT ganhou destaque e deixou de ser o alívio cômico
Por Karine Seimoha | , iG São Paulo |
Quando Félix e Niko deram o primeiro (e tímido) beijo gay da TV aberta brasileira, na novela "Amor à Vida", muito se alardeou sobre a cena. Os mais conservadores chegaram a dizer que ela representava o início do fim. Já quando Clara deixou sua família e foi morar com a fotógrafa Marina, na novela "Em Família", o autor foi acusado de incentivar a destruição da família traidicional brasileira. Mas o fim do mundo para os conservadores foi mesmo quando Teresa e Estela deram um beijo lésbico de personagens da terceira idade em "Babilônia", e a cena foi um prato cheio para quem acusa a Globo de querer empurrar os personagens LGBT goela abaixo da audiência.
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Não raro, os autores sofrem ataques por incluírem papéis LGBT em suas tramas - em uma tentativa de diminuir a desinformação e os estigmas sobre personagens fora da heteronormatividade. As redes sociais, porém, mostram o contrário: discursos de ódio, reclamações, ataques aos atores. Para o publicitário e ativista da causa LGBT Vinicius Oziel, de 24 anos, há duas vertentes que mais incomodam nos diversos setores do público.
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"Para o LGBT, o grupo que eu faço parte, o que mais incomoda é que as emissoras nunca optam por usar atores LGBT para nos representar. É sempre o homem cis heterossexual branco. Na novela 'A Força do Querer', por exemplo, é uma mulher cis interpretando uma pessoa trans. Essa poderia ter sido uma boa oportunidade para dar espaço para um trans atuar", explicou. Já para quem é de fora do movimento, o publicitário acredita que isso se deve a um momento do País que ele classifica como sendo de retrocesso.
"Eu vejo que a população está tendo acesso a uma informação que antes não tinha acesso, quando a Rede Globo insere o personagem LGBT em todas as novelas, para dar representatividade, mas há pessoas que não tiveram ainda acesso a essas informações. Nisso, a gente consegue perceber que isso é um retrocesso", afirma.
Daniel Ribeiro, diretor do longa "Hoje Eu Quero Voltar Sozinho" (2014), também acredita que o público ainda é bastante conservador. Ainda mais quando se tratam de personagens fora do estereótipo que criou-se em torno dos integrantes do movimento. "O público ainda é muito conservador. Quando você constrói o personagem de uma forma que faz o espectador acompanhar a história e criar empatia pelo personagem, funciona. Quando você não constrói o personagem para o público antes ou de uma forma mais didática, muitas vezes tem a rejeição. O público hoje está mais acostumado com alguns personagens, e com outros, não. Jovem gay tem muitos. Quando a Fernanda Montegro foi lésbica, foi um choque. Depende muito do tipo de personagem, da novidade que traz para o público", explica.
O colunista da Folha de S.Paulo , Tony Goes compartilha da opinião de Ribeiro. "Quem causa incômodo é o gay bem resolvido, bem-sucedido, que não está nem aí para a homofobia. O gay caricato nunca incomodou, pelo contrário. Ele funcionava como um aviso: 'seja gay e sofra como esse personagem'", conta. O que, por sorte, está mudando: começam a surgir retratos positivos de personagens gays, como a Globo faz seguidamente em suas novelas, são a famosa “água mole em pedra dura": tanto bate até que fura. Não são a única maneira de reverter a opinião da sociedade, mas talvez sejam a mais importante que há no momento.
Redes sociais: ajudam ou atrapalham?
Se esses papéis são representados na TV desde o começo dos programas de entretenimento, por que só agora esses personagens passaram a incomodar? Para Oziel, a explicação é uma só: as redes sociais. Com a sua popularização, foi aberta uma verdadeira Caixa de Pandora quando o público percebeu que tinha voz e que tinha como ser ouvido sem ser pela mídia tradicional.
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"Acredito que, quando as pessoas perceberam que tinham uma voz ativa ali dentro, todas as opiniões que ficavam mais escondidas, mais restritas aos assuntos de mesa de bar na sexta-feira, hoje são um pouco mais expostas. O incômodo sempre existiu, mas ele tem se intensificado, bem como sua exposição ao ver os LGBT na televisão", explica.
Representatividade importa
Goes também aproveita para explicar que a maior importância que esses personagens têm é o de acabar com a heteronormatividade. "Justamente para mostrar que gays, lésbicas e trans não caíram de outro planeta, mas são pessoas comuns, com os mesmos defeitos e qualidades de todo mundo. E que dá, sim, para ser gay, exercer sua sexualidade, ter sucesso na profissão e no amor, e ser feliz. Isto já está assimilado nas classes de maior poder aquisitivo e acesso à educação. Infelizmente, nas classe mais baixas, ainda é comum ouvirmos que é preferível ter filho bandido a filho viado", lamenta.
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Oziel também comenta sobre a importância da quebra dos paradigmas, que ocorre ao trazer esse assunto para a sala de estar das famílias - rompendo com os estereótipos. Apesar disso, ele não faz somente elogios à forma como o assunto está sendo exposto. Para ele, falta que o gay não seja o alívio cômico do núcleo ou o melhor amigo da mulher, mas sim, o protagonista da história. Além disso, falta espaço para os atores LGBT na interpretação desses papéis - o que garantiria mais visibilidade e empatia para a causa do que apenas retratar que o conceito de heteronormatividade não deveria existir. Contudo, não é válido desmerecer a luta dos autores brasileiros para inserir essas discussões no ambiente familiar.
"Não são a única maneira de reverter a opinião da sociedade, mas talvez sejam a mais importante que temos no momento. Também vale ressaltar o papel de programas como o da Fátima Bernardes (Globo), que debatem o assunto com frequência e mostram que todas as famílias têm membros LGBT. Isto é fundamental para que o gay que se sente isolado saiba que ele não está sozinho no mundo", corrobora o colunista.
Ribeiro também cita a importância de ajudar os mais jovens a se descobrirem - ao invés de acharem que há algo de errado com eles. "Esses papéis tem uma importância de criar referência para o LGBT e para quem se está se descobrindo. Como é um assunto tabu, muitas vezes, a pessoa não tem referências para aquilo que está sentindo. Adolescente não entende direito, e como se fala pouco sobre isso de forma direta, o cinema e o audiovisual cumprem esse papel educativo", ressalta.
Então, por que tanto preconceito?
O colunista arrisca que o preconceito vem do machismo, fruto da sociedade patriarcal em que vivemos, e que é difícil confrontar os espectadores dessa forma, em um assunto que era proibido, mas que o Brasil tem bastante sorte com seus autores - todos são simpáticos ao movimento. Oziel e Ribeiro colocam o preconceito na conta da desinformação e do senso comum, mas discordam sobre a forma que um personagem trans na Rede Globo está sendo retratado. O que não discordam, porém, é que falta aceitação por parte do público - não só para os personagens, mas para toda a comunidade LGBT. "Mas é claro que só as novelas não bastam. Falta, acima de tudo, educação", pontua.
Ribeiro ainda afirma que a televisão não deve se curvar à desaprovação do público. "Para mudar esse cenário de preconceito, devemos continuar produzindo conteúdo para continuar debatendo o assunto, combater a censura. É isso, não pode ter censura. Precisa da liberdade de expressão, da liberdade de criar os personagens", afirma.
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"Muitos dos que reclamam são perfeitos hipócritas: na vida pessoal não têm nada contra gays e lésbicas, mas atacam os LGBT da TV por que isto repercute em seu público-alvo (geralmente, os fiéis de suas igrejas). Dizem que gays são pedófilos e que discriminá-los seria 'proteger a família' (quando as estatísticas comprovam que a imensa maioria dos ataques de pedofilia são cometidos por homens hétero e dentro das próprias famílias das vítimas). Mas tem aqueles que se incomodam mesmo, e pela razão que eu citei acima. O personagem gay 'positivo' está mandando uma mensagem para a bichinha assustada do interior: 'você não precisa ter medo de ser o que é, veja só como eu me dei bem'. Isto é uma mensagem subversiva, que vira de cabeça para baixo a ordem machista e patriarcal em que vivemos", finaliza Goes.