William Kentridge é um dos exemplos mais evidentes de artistas que rejeitam ser confinados a uma única linguagem. Talvez, mais apropriado do que qualquer título, seja vê-lo como um criador, já que ele nunca se contentou em se limitar a um único campo artístico. Ao longo de sua carreira, aventurou-se por diversas áreas: artes plásticas, cinema, televisão, teatro e ópera. Para ele, explorar um novo tema muitas vezes significou transitar entre diferentes formas de expressão.
Agora, Kentridge é o protagonista de uma série distribuída pela MUBI. “Self-Portrait As a Coffee-Pot” (numa tradução literal: “Autorretrato Como uma Cafeteira”), que estreou em outubro, oferece uma visão íntima e repleta de humor sobre sua vida no estúdio. Esse espaço de criação é interpretado como a mente do artista, repleta de confusões, nuances e desejos. Nele, há espaço para tudo, inclusive para a procrastinação, um alívio mental para tantos artistas ao redor do mundo. Ou brincar a própria imagem, como se fosse uma peça de uma colagem animada. Afinal, é a sua cabeça; ele pode tudo.
“Quando eu tinha três anos, queria ser um elefante. Mas falhei nisso. Quando tinha 15 anos, queria ser maestro de orquestras, mas me disseram que para ser maestro era preciso saber ler música . Então, fui forçado a ser artista” , ele começa, já evidenciando seu humor e autocrítica. Pouco depois, conduz uma entrevista consigo mesmo, adotando o papel de um analista implacável, criticando sua própria procrastinação e revelando suas contradições. Ele é, afinal, o seu maior crítico. No meio da imagem fragmentada de si mesmo, ele explora as origens de uma ideia.
Sua demonstração deixa evidente que a arte não é pura. As ideias se misturam com obrigações do dia a dia, como descongelar comida, e com aspectos que fogem ao campo da criação. E, naturalmente, em sua vulnerabilidade, surgem reflexões sobre si mesmo, como o processo de envelhecimento do corpo.
Sua relação com as artes remonta à sua infância. Kentridge aprendeu a desenhar com carvão aos 8 anos. Mais tarde, tentou mudar de rumo, aspirando ser ator, mas abandonou essa ideia ao perceber que não tinha vocação para a profissão. Nascido em Joanesburgo, na África do Sul, Kentridge cresceu em um período marcado pelo apartheid, mas desde cedo desenvolveu uma perspectiva crítica ao regime.
Seus pais, os advogados Sydney Kentridge e Felicia Geffen , eram ativistas pelos direitos humanos e atuaram na defesa de vítimas da segregação, o que provavelmente influenciou sua escolha de estudar Política e Estudos Africanos na Universidade de Witwatersrand. Esse background lhe forneceu a base para imbuir sua arte com discussões políticas e sociais. Um exemplo disso é o projeto “Ubu + 100”, em que ele adaptou a peça Ubu Rei para uma série de gravuras, “Ubu and the Truth Commission”, posicionando o vilão da história em um contexto sul-africano.
Em outro momento, Kentridge criou KABOOM! (2018), uma instalação multimídia de grande escala, que retrata a história de quase dois milhões de carregadores africanos que foram recrutados pelas forças coloniais britânicas, francesas e alemãs durante a Primeira Guerra Mundial.
Bravo! entrevistou o artista, que compartilhou suas motivações, fontes de inspiração e até mesmo os aspectos da sua profissão que o deixam cansado. Confira a íntegra da conversa.
“Self-Portrait As a Coffee-Pot” incorpora elementos de humor, filosofia e política. Você poderia contar como o isolamento durante a pandemia influenciou o tom e os temas dessa série?
O tom e os temas da série já eram conhecidos antes. A série deveria ser sobre a vida no estúdio. O que a pandemia fez foi… Primeiro, significou que fiquei preso dentro do estúdio. Isso fez com que não pudesse ser um documentário sobre Joanesburgo, aproximando-se mais do estúdio. No entanto, desde o início, a série já tinha a intenção de ser sobre a vida no estúdio. O que a pandemia fez foi me dar meses à frente sem viagens, algo que não acontecia há 40 anos. Isso me permitiu focar completamente no projeto. Portanto, o tempo foi o primeiro impacto que a pandemia trouxe.
Em segundo lugar, reforçou a ideia de que deveria ficar confinado no estúdio durante todo o processo. A sensação de confinamento que todos sentimos na pandemia, a claustrofobia do estúdio, também apareceu. O estúdio se tornou uma espécie de cabeça ampliada. Esses eram temas que já pairavam ao redor da série, mas que foram consolidados devido à pandemia.
A série combina animações desenhadas à mão, colagens e performances. Que papel esses diferentes meios desempenham na exploração da liberdade artística e da imaginação em espaços confinados?
A primeira coisa sobre animação desenhada à mão é que é possível fazer um filme.
É algo simples, basta uma câmera. Antes era só isso: uma câmera e um rolo de filme. Hoje, uma câmera e um cartão de memória. Não é necessário contar com o apoio ou entusiasmo de uma equipe externa ao estúdio, como produtores ou distribuidores, como seria com um filme de grande escala, que exige financiamento. Esse acaba sendo o jeito inevitável de começar projetos grandes.
Comecei a fazer filmes de animação após escrever roteiros de longa-metragem e perceber que minha vida seria passada tentando agradar os outros para poder praticar minha arte. Precisava encontrar uma forma de fazer filmes que eu pudesse iniciar no momento em que tivesse a inspiração. Assim, nasceram as animações em carvão, no final dos anos 1980.
E elas foram feitas sem a necessidade de justificar para mim mesmo qual seria o tema ou a história. Desde então, todos esses projetos, incluindo a série de filmes, são feitos sem roteiro ou storyboard. Acredito que as imagens com as quais trabalho me mostram o caminho, guiam para o próximo projeto.
Em “Self-Portrait As a Coffee-Pot”, você se inspira em figuras como Charlie Chaplin, Buster Keaton e Dziga Vertov. Como os estilos deles influenciaram sua abordagem de combinar arte, política e humor neste trabalho?
Charlie Chaplin e [Buster] Keaton, dois cineastas geniais, me mostraram como é possível fazer um filme envolvente sem ter, inicialmente, a trama de um thriller ou uma estrutura arcada. O filme pode ser sustentado pela inventividade, humor e brilhantismo na realização.
Chaplin também me mostrou que ter uma ideia é ótimo, mas você precisa trabalhar muito para entender a gramática dessa ideia. O que parece fácil em seus filmes — o timing imediato, como ele coloca uma cadeira no último momento — é fruto de um misto de ideia e repetição exaustiva. O domínio da ideia vem com muito esforço e prática.
Você menciona que a série é uma exploração do otimismo no processo criativo. Pode falar sobre o sentimento de possibilidade que surge ao se deparar com a tela em branco, e como esse otimismo molda a narrativa da série?
A série aborda muitos temas diferentes. Um deles é o autorretrato. Outro é o lugar em que estamos, o que envolve a paisagem e o ponto de fuga. Há também o estúdio como uma cabeça ampliada, com pensamentos vagando por ali. Trata-se do destino e também do pensamento utópico. São muitos os temas, mas termina com um episódio sobre otimismo.
A série demonstra, mais do que argumenta, que o ato primário no estúdio é o de fazer. Seja desenhando ou ensaiando, o ato em si é o principal. E no estúdio, seja você desenhando uma cena desesperadora da Comuna de Paris em 1870 ou um pequeno jarro de flores, como fazia Renoir, a atividade é a mesma. Sua relação com o mundo pode se refletir na obra quando ela sai do estúdio, mas no processo, você se perde nos hábitos da mão, do olho, na junção das imagens.
E o otimismo está nessa atividade. Naquilo que é criar algo, seja um texto ou, no meu caso, um desenho ou um filme de animação. Não se trata de o tema ser otimista ou pessimista. Não importa se você está desenhando camponeses sorridentes ou os campos lamacentos de Flandres. O otimismo ou pessimismo não está no tema, mas sim na própria atividade e na abordagem dela.
Quão importante é o ato de colaboração nesta série, e como suas interações com outros artistas e pensadores influenciaram o resultado final?
No meu estúdio, duas coisas acontecem. Uma delas é a atividade solitária de eu mesmo fazendo os desenhos ou as animações em carvão. Nesse processo, não há necessidade nem espaço para outra pessoa ajudar com os desenhos ou até com a captação dos frames da animação. Isso atrapalharia. Mas assim que essa parte termina, especialmente com os filmes, envolvo um editor, compositores, músicos. Transforma-se de um ato solitário para algo muito colaborativo.
Nos projetos teatrais, a colaboração começa muito antes. Mesmo que eu passe meses desenhando para criar as projeções que vão integrar o espetáculo, há uma sensação de colaboração que se manifesta em semanas de trabalho com atores e performers.
Nesta série de filmes, houve muitas cenas de colaboração com outros performers. Tivemos que escolher quais caberiam e funcionariam melhor. Mas foi importante mostrar que ambas as coisas existem no estúdio. Tanto a atividade solitária de desenhar quanto a colaboração energética e inventiva de outras pessoas são essenciais para que outros projetos ganhem vida.
Os diferentes colaboradores se envolviam em momentos específicos, em diferentes episódios e seções. Às vezes, estávamos criando trabalhos novos. Outras vezes, revisitando projetos antigos. Assim, houve menos colaboração ao longo de toda a série, em comparação a um único projeto em que os colaboradores estariam envolvidos do início ao fim.
Mas o objetivo era mostrar que a colaboração não é apenas dar instruções a técnicos, mas depender do que eles produzem para que as ideias floresçam. Controlar ou navegar a partir do controle.
Seu trabalho frequentemente explora a tensão entre acaso e controle, um conceito que você descreve como ‘fortuna.’ Como essa noção influencia a criação de “Self-Portrait As a Coffee-Pot”, especialmente no contexto de combinar animação, performance e comentário político?
A “fortuna” que você menciona refere-se a fazer uma obra que não depende do acaso, como os surrealistas, que escolhem tópicos aleatórios de um chapéu. Nem tampouco há um roteiro ou storyboard programado. Acredito que a imagem não surge do nada. Você começa com uma imagem, uma frase ou um pensamento.
E então vê onde isso te leva. Quais pensamentos e memórias surgem? O roteiro da série foi construído dessa forma. Começou com uma série de tópicos que poderíamos cobrir. Se havia 15 episódios, também tínhamos 15 tópicos possíveis. Alguns foram modificados, outros amalgamados e alguns abandonados no processo de criação, que levou dois anos e meio ou três de filmagem.
Portanto, é uma constante de acordar no meio da noite com a sensação de pânico, pensando em como fazer a série funcionar, em como dar sentido a tudo isso. Se for muito controlada e planejada, não mostra o caos do estúdio. Mas se for muito incoerente, as pessoas param de assistir. Essas ideias ficam pairando na minha cabeça.
Mas, no fim, depois de seguir o fluxo das frases, eu as escrevia em um caderno. As ideias podiam surgir na manhã da filmagem de um episódio, e me lembravam: “Ah, no próximo, quero mostrar a dualidade do artista no desenho.” Essas perguntas surgem assim. Então, o processo de trabalho traz ideias, que eu anoto no meu caderno. Quando chego a um episódio, existem diferentes frases que podem me dar uma direção.
O que mais te cativa no processo criativo?
Essa é uma pergunta difícil. Não acho que seja o processo em si, mas o ato de fazer um desenho. Sempre há uma imagem ou um impulso por trás de cada desenho.
Às vezes, começa com uma marca aleatória numa folha de papel, provocando a formação de uma imagem na minha mente. Uma marca aleatória, muitas vezes uma linha horizontal, pode de repente sugerir um horizonte. Funciona assim para mim, mas muitas vezes é um medo que inicia uma série de obras.
O amor pela arte precisa ser cultivado? Na sua experiência, qual é o papel da arte na sua vida hoje?
Ele não deve ser interrompido. Quer dizer, sabemos que as crianças desenham naturalmente, mas a maioria para entre os 8 e 14 anos – seja por perder o interesse ou por alguém fazer um comentário rude, e elas desistem.
Então, não sei se isso é um amor pela arte, mas, certamente, a exposição à arte – seja música, cinema ou desenho – precisa estar presente.
Que papel a arte desempenha na sua vida hoje, além do trabalho?
Eu não a busco tanto. Existem exposições que quero ver, muitas que deveria ver, mas perco, e filmes que pretendo assistir, mas nunca chego a ver. Sempre há essa lacuna de coisas que eu teria apreciado ou que teriam me nutrido se as tivesse visto.
Mas acho que meu padrão é voltar ao estúdio sempre que posso. Há uma necessidade fundamental por essa atividade no estúdio. Então, acho que não penso nisso como arte, mas suponho que seja. Certamente não é sobre beleza. Eu não anseio por beleza. Se preciso relaxar, eu iria para o mar, para a costa, perto da água.
Como os artistas podem se proteger de desenvolver uma relação tóxica com sua arte? Quais medidas você considera essenciais para manter um processo criativo saudável e gratificante?
Às vezes, você não se aguenta quando está desenhando, você espera por algo novo, mas olha para trás e vê o mesmo de sempre – mesmas linhas, mesmo peso.
No Instagram, o algoritmo me envia toneladas de vídeos de pessoas ensinando a desenhar – mãos, rostos, olhos, narizes, lábios. Eu, muitas vezes, penso que realmente deveria estudar esses vídeos e pegar algumas dicas.
Mas como evitar um relacionamento tóxico? Acho que é através de projetos que ultrapassam os limites e encontram novas formas.
Quando eu era muito jovem, temia que minha vida fosse apenas fazer desenhos a carvão. Essa perspectiva me aterrorizava, e foi isso que me levou a começar animações. Então, eu temia que minha vida fosse apenas filmes animados e desenhos, o que me levou a explorar o teatro e a ópera.
Então, acho que essas foram estratégias para evitar essa conexão tóxica. Olhando para trás, penso: “Vamos voltar à alegria de apenas fazer desenhos por seis meses, sem pensar em colaborações ou qualquer outra coisa.” Mas tenho certeza de que, depois de alguns meses, eu estaria ligando para amigos e colaboradores, dizendo: “Venham para o estúdio, vamos começar algo.”
Quais artistas mais te inspiram no momento, e como eles influenciam o seu trabalho?
São fundamentalmente os artistas mortos que deixam a impressão mais forte em mim. Os previsíveis: Goya, Velázquez, Picasso. Assim como amigos, como Philip [Guston]. Quando você olha para o trabalho de [Giorgio] Morandi ou Philip, ele captura a essência de desenhar objetos, naturezas-mortas, e revela o universo através deles.
Então, trata-se dessas conexões, mais do que de um artista em particular. Há muitas possibilidades que se abrem ao ver como outros artistas trabalham. Bruce Nauman filmando a si mesmo no estúdio, por exemplo, provavelmente despertou meu interesse em usar o próprio estúdio como sujeito na minha obra. Mas isso muda de mês a mês, de ano a ano, dependendo do que eu vejo.