A fúria da Rainha dos Raios chamada Alice Caymmi

Celebrando 10 anos do álbum, Alice Caymmi entrega vísceras e alma no palco do Teatro Oficina

Foto: Laís Franklin
A fúria da Rainha dos Raios chamada Alice Caymmi

O ano era 2014 quando, em meio à extinta Virada Cultural de São Paulo , passei pelo palco Rio Branco, que naquele ano se dedicava à releituras de discos clássicos. Entre plumas e bananas, numa estética bem carnavalesca, Alice Caymmi surge no palco para apresentar o disco Eu Não Tenho Onde Morar (1960), de seu avô Caymmi.

A escolha já era inusitada, já que se trata de um álbum que totaliza 30 minutos, mas os arranjos pendendo para o rock fizeram da performance uma imensidão de força e personalidade. Algumas faixas ficaram de fora enquanto outras da trajetória de Caymmi tomaram corpo, num apanhado que apresentava a obra de vida do artista num tom não contemporâneo, mas um tom de Alice.

<span class="hidden">–</span> Gustavo Zilbersztajn/divulgação

Ainda que num lugar de representante de uma das mais importantes famílias da música brasileira, ela já mostrava ali que tinha um estilo muito próprio e desafiador. Que não cabia em caixa nenhuma de mera herdeira. A prova disso veio no mesmo ano.

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Rainha dos Raios ganhou o mundo naquele 2014 e chegou para arrebatar a cena musical. Quem estava ali não era mais a Alice da dinastia Caymmi. Era sim uma artista completa, emancipada, dona de sua narrativa e muito, mas muito para frente. O disco era seu segundo gravado em estúdio, mas talvez o primeiro de uma jornada que não se apaziguou até hoje.

Rainha dos raios: A fúria Alice Caymmi/divulgação

“O que a gente tá fazendo hoje é comemorar 10 anos da independência do país Alice Caymmi” , diz. “Esse disco é tão ‘avançadão’ que visitar ele é visitar essa coisa minha futurista, de ter um olho lá na frente e outro no agora. Sou muito interessada no movimento da coisa, jogando pra frente sem parcimônia, sem julgamento”.

Se o arrebate me pegou 10 anos atrás, o que acontece hoje é uma catarse. Este 2024 fica marcado por Rainha dos raios: A fúria , a segunda parte da trilogia da destruição, como descreve a própria Alice em carta aberta sobre este novo capítulo de sua história. Uma retomada, sim, mas que concretiza a potência de uma artista que não tem limites. Não se limita por sua genética, nem pelo momento mercadológico da cena musical.

<span class="hidden">–</span> Caio Gallucci/divulgação

A versão deluxe — e em Fúria — celebra uma década desse álbum ainda tão atual, que não só não perdeu o vigor, mas se reinventou. “Não precisava de renovação, porque ele é super atual, mas a gente trouxe coisas que a gente tem vontade de cantar agora, como “Amor”, que fez sucesso nos anos 80 na Espanha. Mas a gente joga pra frente, joga luz sobre a canção. E o Rainha é isso, eu e o Straus entendendo o tempo de agora independente de quão pra trás a gente olhe. Boas canções atravessam o tempo”.

Olha para trás, mas também para frente, o que se prova também pela inclusão da ótima canção do Calcinha Preta , “Agora Estou Sofrendo”, numa roupagem de rock melódico, épico, mas sem perder a sofrência.

Para o show de estreia, o lugar escolhido foi o Teatro Oficina, templo das artes cênicas onde, aos 19 anos, Alice teve uma grande revelação depois de assistir o espetáculo “Bacantes” , de Zé Celso. “Nunca mais voltei a ser o mesmo corpo, a mesma existência. Eu era, a partir dali, uma artista: uma bacante. E assim serei até o dia da minha morte”.

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Show Teatro oficina Caio Gallucci/divulgação

O show é um desbunde. Algo que certamente Zé Celso aplaudiria de pé. Forte, raivoso, sem dó, ele dilacera cada faixa numa evolução constante. Despida de todas as amarras, Alice entrega a alma naqueles icônicos metros de tablado. Ela está exposta até mesmo no figurino, que se transmuta e vai da palhaça às entranhas, culminando no corpo nu.

Sobre o momento da música, ela é enfática: “Tá todo mundo doente. Só que eu sou maluca o suficiente para aparecer doente. E botar minha cara ali. E fazer as coisas na base do ódio. Só porque não queriam que eu estivesse ali. Porque eu sou assim”.

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<span class="hidden">–</span> Caio Gallucci/divulgação

Alice pode até voltar seu olhar para trás, mas sua mente e seu corpo estarão sempre anos luz à frente de seu tempo. E que sorte viver nele para ver tudo isso bem de perto.

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