“Não tem prazo de validade", diz Lô Borges sobre o Clube da Esquina
O iG Gente conversou com o coautor do álbum que completa 50 anos em 2022
50 anos se passaram desde que o “Clube da Esquina” foi lançado. Muito aconteceu nestas cinco décadas desde que Milton Nascimento convidou um jovem de 19 anos, chamado Lô Borges, para ser coautor de um disco que marcaria a música brasileira para sempre. Apesar do aniversário do álbum duplo mobilizar a cultura atual, o artista mineiro garante: “O Clube da Esquina é uma obra que não tem prazo de validade”.
Em entrevista exclusiva ao iG Gente, Lô conta que segue com a mesma certeza que tinha em comemorações anteriores do disco: que continuará criando músicas. “10 anos atrás eu estava falando dos 40 anos do Clube da Esquina e me perguntaram, daqui a 10 anos, o que estaria fazendo. Eu falei que certamente eu vou estar fazendo música e certamente eu vou estar falando dos 50 anos do Clube da Esquina”.
Borges manteve sua promessa e, aos 70 anos, lançou em março deste ano o quarto disco de inéditas em quatro anos. “Chama Viva” conta com as participações de Milton Nascimento (o “Bituca”), Beto Guedes, Patricia Maês e Paulinho Moska. O projeto chega trazendo a sonoridade do órgão, já que o cantor relata que explorou a função do instrumento no teclado da própria casa e se afeiçoou por um som inédito que não havia trabalhado anteriormente.
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Lô afirma que, após o Clube da Esquina, criou uma agilidade para compor novas canções - principalmente depois de seu primeiro disco solo, “Lô Borges” (1972), também conhecido como “Disco do Tênis”. Ele permanece até hoje compondo com uma grande frequência, o que não mudou quando a pandemia começou. No período de isolamento, o artista se dedicou a esta tarefa e acabou fazendo músicas suficientes para quatro discos.
“Nesses dois anos de pandemia e isolamento social, sem viajar, sem poder fazer show e sem encontrar as pessoas, eu falei: ‘Eu não vou ficar em casa triste da da vida’. Eu tenho muito o que fazer em casa. Por exemplo, compor. Por exemplo, compor. Por exemplo, compor”, compartilha entre risadas.
Lô descreve como “gratificante” a sensação de acompanhar novas gerações entrando em contato com seus trabalhos nesses 50 anos do Clube. “Eu acho que isso é um processo que já vem acontecendo já há algumas décadas, alguns anos [...] Sempre tiveram gerações posteriores à nossa que se interessaram pelo Clube da Esquina”.
O compositor também relembra: “Teve um momento que o Clube da Esquina foi um pouco rejeitado. Nos primeiros momentos, nos anos 80, no final dos anos 70. Teve um começo que ele foi um pouco rejeitado, eu considero isso. Mas depois que ele atingiu a maioridade, que ele fez 20 anos, as pessoas começaram a aceitar mais. É aquela coisa que vai passando de pai pra filho, de avô pra neto”.
Borges ainda defende que o impacto do disco “vai durar por muito tempo”: "Se durou 20, 30, 40, 50 anos, eu acho que pode durar 60, 70… É uma obra que foi feita com muita inspiração de todos envolvidos. Eu agradeço muito o Milton por ter me convidado, eu tão jovem, para ser coautor do álbum junto com ele. Foram as minhas primeiras composições, que já foram para ‘Clube da Esquina’. Foi a minha estreia como compositor”.
O convite de Bituca
Relembrando a estreia como compositor, que decolou sua carreira após 1972, Lô Borges recorda que o convite de Milton Nascimento aconteceu após o sucesso de ‘Para Lennon e McCartney’, música que havia colaborado com Fernando Brant e Márcio Borges dois anos antes. “Ele [Bituca] disse: ‘Queria fazer um disco com você’. Eu falei: ‘Nó, cara. Estou me preparando pra fazer vestibular, tenho que pedir à minha mãe e ao meu pai’. Naquela época, 18 anos pareciam ser 15. Era diferente desses meninos espertos que tem hoje”, pontua.
Contudo, apesar da surpresa e felicidade com o convite, ele revela que a família foi resistente com a ideia de deixá-lo ir ao Rio de Janeiro para gravar o disco. “Minha mãe não quis deixar eu ir para o Rio. Ela falava: ‘Você não vai morar sozinho com o Bituca no Rio. É Ditadura Militar, se juntar 3, 4 pessoas no apartamento, eles vão achar que vocês são subversivos, vocês vão ser presos’”.
“Minha mãe foi muito resistente à minha ida para o Rio. Mas eu conversei com o meu pai, que era um pouco mais liberal que ela. Minha mãe é aquela política da galinha que quer os pintinhos embaixo da asa. Era isso que ela queria. Então ela foi meio intransigente no primeiro momento e meu pai convenceu ela, falou que era uma oportunidade que eu ia ter muito importante, de iniciar uma carreira discográfica. Então foi muito importante para mim ter ido para o Rio”
Ainda que 50 anos depois do lançamento do álbum, Lô destacou em diversos momentos da entrevista sua gratidão por Milton: “Agradeço mais uma vez o Bituca por ter me levado para o Rio e ter apostado em mim, me dando aquela responsabilidade, quando eu tinha 19 anos [...] Me dando a responsabilidade de dividir um álbum com o Milton Nascimento, que já era um cara consagrado”.
Borges diz que a gravadora havia estranhado o convite de Nascimento em um a princípio, já que ele era apenas “um adolescente desconhecido e inexperiente chamado Lô Borges”. “Eles nunca tinham ouvido falar em Lô Borges na vida. Eu era um menino desconhecido, eu ficava alí na esquina tocando violão e cursando o ensino médio para fazer vestibular, eu nem lembro para o que era mais. Mas eu gostava de compor. Eu gostava muito de música e o Milton apostou em mim, apostou nas minhas músicas”.
Da ditadura ao marco na história
Após enfrentar a resistência da família, Lô lidou com outras questões quando esteve no Rio de Janeiro para a gravação do disco: “A gente morou em vários apartamentos [...] Morar no Rio antes de gravar o álbum foi difícil, porque a gente era itinerante. A gente passava 2 meses em um apartamento e o pessoal pedia para sair do apartamento. Então era difícil, não existia liberdade naquela época”.
“A ditadura confere aos autoritários todo o autoritarismo que cada um tem de si. Todo autoritário se sentia respaldado pela ditadura. Então a gente não era visto com bons olhos [...] No primeiro lugar que a gente morou, a gente foi expulso porque o porteiro falava que a gente era doido, maluco, que a gente bebia e era cabeludo. E o síndico acabou expulsando a gente do prédio. Aí a gente saiu em peregrinação [...] E olha que a gente era comportado, não fazia barulho alto, não tinha som ligado alto. Era um violãozinho dentro de casa, só isso. Mas era muito preconceito contra tudo”
O compositor explica que eles só conseguiram se dedicar completamente ao álbum após o empresário de Nascimento encontrar “uma casa paradisíaca no litoral de Niterói, em Piratininga, numa enseadinha chamada Marazul”. “E alí a gente não tinha síndico, vizinho ou porteiro, só tinha o mar e os instrumentos pra gente compor. Aí foi uma maravilha”, comenta.
As músicas criadas nesta época foram vistas como um “grito de esperança” dos próprios artistas envolvidos no projeto, diante do contexto de repressão dos militares. “A gente fazia música para se sentir mais esperançoso, a gente queria sentir essa esperança [...] A gente vivia em tempos muito duros, muito difíceis da ditadura militar nos anos Médici, a barra mais pesada, onde mais gente foi morta, presa e desaparecida”, relembra.
“Então [o Clube da Esquina] foi um grito pela liberdade da gente. Queremos ser livres? Vamos fazer arte. Não existia outra coisa para fazer senão arte”, segue Lô, que ainda vê esta inocência artística como um elemento que faz com que as canções do disco continuem marcantes até hoje.
“Eu acho que foi uma conspiração do cosmos. Juntou pessoas certas, na hora certa e no lugar certo para fazer uma coisa cheia de inspiração, de liberdade criativa. Acho que um dos motivos do Clube da Esquina ter essa longevidade é que ninguém tava fazendo aquele álbum para se dar bem na vida, para vender milhões de cópias, para ficar milionário ou super famoso. Ninguém estava pensando nisso [...] Eu acho que isso ajudou o Clube da Esquina, não ter essa intenção de se dar bem comercialmente. A gente queria fazer arte, obra de arte”
Borges defende que a liberdade dada por Milton em um ambiente criativo dos estúdios e a genuinidade nas canções fez com que o álbum não tivesse tal “prazo de validade”. “Porque as pessoas, quando escutam até hoje, percebem que as coisas foram feitas ali com inspiração, com verdade e sem uma forçação de barra de querer se dar bem, de vender milhões de cópias. As pessoas percebem que as coisas foram feitas com muita amizade, com muita inspiração, interação e liberdade”, reflete.
“Era uma oficina com grandes letristas, arranjadores, músicos, artistas, regentes… Todo mundo queria somar para fazer uma obra de arte. A gente queria fazer uma obra de arte, não queria se dar bem na vida, não era essa a intenção. Eventualmente se dar bem na vida faz bem, é legal se dar bem na vida. Mas a intenção nunca foi essa. A intenção era fazer uma obra de arte, fazer uma pérola, uma coisa preciosa. Quando eu escuto o Clube da Esquina, eu acho que a gente conseguiu isso, fazer uma obra de arte”, conclui.
Futuro
Companheiros da criação desta obra de arte seguem na vida de Lô Borges, como Milton Nascimento e Beto Guedes, que aceitaram o convite de colaborar no recente disco do artista, “Chama Viva”. Patricia Maês também foi de extrema importância para todo o projeto, já que colaborou com o mineiro nas letras de todas as canções do álbum.
“Os convidados vieram mais no fim do disco, não pensei em um ‘disco com convidados’. Foi algo quase sinfônico mesmo. Na medida que os arranjos foram ficando prontos, a gente trabalhava a estética, nas minhas vozes… Aí pensei em convidar uma galera pra cantar comigo nesse disco”, explica.
Prestes a voltar a realizar shows na divulgação da novidade, Lô diz acreditar que conseguiu se dedicar ao universo da composição pelo fato de não estar em turnê nos últimos anos: “Eu estava com um pouco de saudade dessa coisa de show, que é gostoso. Mas é gostoso e desgastante. Eu acho que eu só fiz essa quantidade de música porque eu não estava viajando. Porque quando a gente pega estrada pra viajar e fazer show em turnê, a gente chega em casa um pouco cansado das viagens, dos shows. Quando eu chego das turnês eu não tenho muito ânimo para compor, por exemplo”.
“Eu acho que pra compor tem que estar até fisicamente preparado também. Tem que estar com a cognição funcionando. Tem que estar bem, porque show é uma coisa desgastante. Ainda mais eu que já cheguei nos 70 nesse ano. Não sou mais um garoto de 40. Mas eu vou pegar a estrada esse ano”, pontua.
Voltando para a estrada, Borges ainda relata que se permitiu “nem passar muito perto de composição” em 2022. “Porque eu estou compondo desde 2019, um disco na sequência do outro. O ‘Chama Viva’ é meu quarto disco de inéditas em quatro anos. É muita composição. E composição é uma coisa da cognição da inspiração, né? Mas gasta um pouco da cabeça, porque você tem que organizar, arquitetar. É uma arquitetura fazer música”, conclui.