Lo-fi: conheça o fenômeno em playlists para estudar, trabalhar e até transar
O gênero musical é apontado pelo Google como uma das tendências de 2022
Enquanto você lê este texto, pelo menos 20 mil pessoas ao redor do mundo estão conectadas na mesma transmissão ao vivo do YouTube, a “Lofi hip hop radio — Beats to relax/study to”. Já foram 65 mil ouvintes simultâneos na rádio criada pelo misterioso Dimitri (ele não revela seu sobrenome), detentora do recorde de transmissão mais longeva do YouTube: mais de 13 mil horas seguidas.
Na programação, como diz o nome em inglês, estão músicas instrumentais suaves, com velocidade rítmica entre 70 e 90 batidas por minuto (algo próximo do coração humano em repouso), uma música de fundo cujo objetivo é fazer o ouvinte relaxar ou focar em suas tarefas. Como capa, uma ilustração inspirada no universo de Hayao Miyazaki, assinada pelo colombiano Juan Pablo Machado, de uma menina, a “Lofi girl”, fazendo exatamente o que se espera de quem está do outro lado da tela.
A premissa simples e curiosa se transformou num case de curadoria de artistas contemporâneos e, depois, num verdadeiro fenômeno da música digital, criando um gênero de música instrumental novo, o lo-fi, que é apontado como uma das tendências de 2022 pelo Google. O movimento, na verdade, apropriou-se de uma expressão antiga ligada ao espírito “faça você mesmo” de qualquer gênero musical, o low fidelity, mas não deixa de ser coerente: praticamente todos os produtores e compositores por trás das músicas de lo-fi, que vão além das rádios on-line e invadiram as playlists de plataformas de streaming, as gravam e finalizam em casa, com o equipamento que ali estiver, mantendo ruídos ou imperfeições.
Muitos deles fazem tudo no celular, e alguns sequer sabem tocar um instrumento, como o paulista Pedro Henrique Ferreira da Silva, que atende pelo codinome Chiccote’s Beats e tem 683 mil ouvintes mensais no Spotify.
"A galera faz na raça, grava coisas no celular, edita e fica bom", exalta o carioca Fábio Bittencourt, por trás do coletivo Tangerina Music, que lançou o primeiro álbum de lo-fi 100% brasileiro, a coletânea “Chill Brazilian Storm”, reunindo 18 produtores de sete estados. — O público brasileiro cresceu muito e agora as pessoas estão entendendo que são artistas por trás. É uma cena muito orgânica, que chegou ao mainstream.
Como uma onda
Diferentemente do Resposta Sensorial Autônoma do Meridiano (na conhecida sigla ASMR) ou da música ambiente, o lo-fi é uma composição artística, que pode até usar elementos como barulho de chuva, canto de pássaros ou som do mar, mas traz uma estrutura musical, com melodia, harmonia e batidas repetidas em loop, e parte de um sentimento dos compositores, buscando transmiti-lo para o ouvinte.
Os mais procurados são os lo-fi para foco em tarefas com estudar ou trabalhar e também aqueles para embalar o sono, mas existem também playlists criadas para jogar, acordar e até fazer sexo.
"É uma febre que se encaixou muito bem com a nova geração, como já foi com a música clássica no passado. São sons repetitivos, batidas mais leves, simples, criando ondas sonoras que ajudam a ativar uma parte do nosso cérebro, podendo liberar ações corporais", explica a musicoterapeuta Julia Ferreira. "É um estilo que ajuda a reorganizar nossas questões internas. Por serem ritmos fluidos, que não exigem atenção, eles deixam nosso cérebro mais livre para focar numa coisa só".
Brasil tem um ‘lo-fi’ para chamar de seu
O carioca Daniel Sander costuma ser o próprio termômetro de seu trabalho, seja enquanto exímio curador de playlists — é dele a “Lofi sleep, lofi rain”, com quase 200 mil seguidores no Spotify —, seja como artista que atende pelo codinome colours in the dark e tem mais de 850 mil ouvintes mensais na plataforma.
Diante de uma insônia crescente por conta da ansiedade da pandemia, ele criou a faixa “Insomnia dream”, que ajudou a embalar seu sono e o de milhões de outras pessoas. Agora, vai investir nesse segmento com o selo Sleep Tales, focado em músicas para dormir, e que nasceu no dia 4 deste mês como o maior de lo-fi da América Latina e o quarto do mundo em números de ouvintes nas plataformas.
"Uso minha playlist para dormir pelo menos uma vez por semana. O mais difícil é encontrar músicas que não acordem as pessoas no meio do sono, então tento entender o que me acorda. Pode ser uma caixa que está mais alta na mixagem, um agudo que não deveria estar ali...", cita o músico, que acaba de lançar seu primeiro EP, “Ócio”, e está com a composição “Domingo de sol”, uma parceria com a produtora IzaBeats, no segundo volume da coletânea “Chill Brazilian Storm”.
"O lo-fi não é um gênero que se fecha nele mesmo, tem diferentes tipos para diferentes sentimentos, o que dá abertura para os artistas se empurrarem, e não competirem entre si".
Bossa nova e hip-hop
Depois de um domínio de selos estrangeiros, principalmente europeus, o lo-fi nacional passou a chamar cada vez mais atenção no mercado internacional, marcando forte presença nas principais playlists e rádios do mundo. O produtor Linearwave (codinome de Yuri Bastos), por exemplo, é o brasileiro que tem maior número de ouvintes no Spotify, com 1,7 milhão. Ao olhar as cinco cidades onde ele é mais escutado, aparecem Cingapura, São Paulo, Sydney, Los Angeles e Jacarta.
"O produtor brasileiro tende a trazer a música de fora, pegar a nossa própria, misturar todos esses estilos e criar uma terceira coisa. É uma das coisas mais bonitas do mundo a maneira como o artista brasileiro absorve esses elementos, e acontece o mesmo no lo-fi", opina Bastos, que costuma juntar a bossa nova ao hip-hop e à musica eletrônica em suas criações.
"Até 2019, a gente trocava muita ideia com os gringos, mas começávamos a ver cada vez mais brasileiros. Foi quando eu e Fábio, do Tangerina Music, criamos um grupo de WhatsApp só com brasileiros. Agora, temos uma cena mesmo".
Uma cena que já tem até documentário, inclusive, o “Lo-fi hip-hop: Beats e sentimento”, dirigido por Gustavo de Castro e Murilo Cunha e disponível no YouTube. Agora, com a volta dos shows, os artistas do lo-fi se preparam para o próximo passo: levar para o mundo real o que já é uma realidade no virtual. Em novembro, por exemplo, Linearwave (Bastos) e colours in the dark (Sander) se juntam a outros produtores no palco do Vivo Rio para um show no Festival Polifonia.
"O próximo passo para o lo-fi é ter a chance de aparecer no ao vivo. Pré-pandemia, foram poucos os lugares com shows ou festivais, o único grande festival foi em Jacarta (), mas agora poderemos viver isso. E também, como qualquer estilo, acredito que vá evoluir, achar novas linguagens, crossovers com outros gêneros, e ainda vai crescer muito no Brasil", aposta Bastos.